"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.10.10

Enxoval

jamais conheci esse homem
que com certeza me dará
a parte de sua vida — a mais doce
um disco de Debussy
gomos de mexerica
beijos na boca seu sexo sua lívida
expressão de amor

jamais conheci esse homem
com quem terei um filho um cachorro um aparelho de chá
a louca intimidade das dores de garganta

(e por jamais tê-lo conhecido
é que me preparo
no ritual patético das moças
separo um vidrilho
um corpo debruado em cio
a maternidade branca das louças)

Déborah de Paula Souza

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30.10.10

A canção do tédio

Anda uma estrela pelo céu,
sozinha, arrastando um véu
de viúva.
- É a chuva.

Rola um soluço leve no ar,
bem longo no seu rolar,
bem lento.
- É o vento.

Perpassa o passo oco de algum
fantasma, quieto como um
segredo.
- É o medo.

Batem à porta. Abro. Quem é?
Uma alta sombra, de pé,
se eleva.
- É a treva.

Mas, desde então, alguém está
comigo. É inútil. Não há
remédio.
- É o tédio.

Guilherme de Almeida

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29.10.10

Espumante

enquanto minha bebida espumar
tomo-a, e sorvo você
enquanto algo meio sóbrio me significar
te tomo, e dela sorvo o líquido borbulhante
não me inspiro
nem aspiro a ser sua dona
enquanto bebo e engulo sua chama
você me sorve
e isso para mim
basta por enquanto.

Lara Amaral

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28.10.10

Lembrança da flauta tocada no Terraço de Fênix

No porta-incenso as cinzas já estão frias.
E a colcha púrpura é um mar revolto sobre a minha cama.
Eu me levanto sem o mínimo desejo de me pentear,
O toucador está coberto de pó.
As cortinas fechadas, banhadas pelo sol que já vai alto,
Têm medo de reavivar a minha dor
Tantas coisas quero dizer, mas aqui fico, muda!
Emagreço, não pelo vinho
Nem pela tristeza do outono.

Acabou-se, tudo acabou,
Dessa vez ele se foi para sempre.
Mil vezes, dez mil vezes pedi,
Mas não consegui impedir que partisse.
Foste para Wuling, longe de meus carinhos.
O pavilhão perdido na neblina.
Só água sob minha janela testemunha minha tristeza,
E cada vez que me volto,
Na direção do caminho que por onde partiste,
Aumenta minha tristeza.

Li Qingzhao
(trad. Sérgio Capparelli e Wu Di)

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27.10.10

não sou mulher de migalhas...
por fim,
o mesmo fim que nunca basta,
eu poderia retornar ao leito. refazer
o ciclo; entretanto, estanquei
geral. guarde o troféu na memória de lampejos
e na garganta seca,
minha última lembrança:
o gole da eterna permanência -
a essência de meus cacos.

Lúcia Gönczy

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26.10.10

Gasto-me à espera
impraticável

fiel
sugo os lábios da noite

invariável caio
nos poços da noite

Gasto-me à espera da noite alheia
amassada de gargalhadas doces e areia

Amor anoitecido vem
tecer-me um vestido
nocturno

Atraiçoo os anúncios luminosos
até a lua nova sabe a ausente
- e eu anavalhei-te com naifas de ansiedade -

Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sobre os barcos
venham em rodas de sol
os montes os túneis e deus

Estou à espera da noite contigo
livre de amor e ódio
livre
sem o cordão umbilical da morte
livre da morte

estou
à espera
da noite

Luiza Neto Jorge

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25.10.10


Não se preocupa em despir o vestido
... em cada dia que passa se alheia
Do bem e do mal.
Fica assim a olhar o chão...

Ou fica sentada...
Numa cadeira, sentada, a gemer de mansinho,...
Ou sorri vagamente para o espaço vazio -
O espaço vazio que é o seu próprio rosto -
Onde nada veio substituir o lugar
Dos gemidos roucos e intensos...

Djuna Barnes

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24.10.10

Camadas

Tenho muitas camadas
Uma camada de livros, outras de sapatos
Tem a camada de plantas
Tenho camadas de cosméticos e adereços
Uma camada de nomes e coisas que vejo
Tudo ordenado ao meu redor
Em forma de corpo
Um corpo que me sustenta quando o meu próprio me falta.

Viviane Mosé

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23.10.10

Revelação

Hoje só fotografei árvores,
Dez, cem, mil.
Vou revelá-las à noite.
Quando a alma for câmara escura.
Depois vou classificá-las:
Segundo as folhas, os anéis dos troncos,
Segundo as suas sombras.
Ah, como as árvores
Entram facilmente umas nas outras!
Vejam agora só me resta uma.
É esta que vou fotografar outra vez
E vou observar com assombro
Que se parece comigo.
Ontem só fotografei pedras.
E a pedra afinal
Parecia-se comigo.
Anteontem — cadeiras —
E a que resultou
Parecia-se comigo.

Todas as coisas se parecem terrivelmente
Comigo...

Tenho medo.

Marin Sorescu

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.10.10

No espelho

No espelho
o olhar desaparece

às vezes desalojado
no meu próprio corpo

às vezes
angustiado
pela angústia
que rola
para lá e para cá como destroços
na rebentação

raspo com um dedo
o vidro
e oiço o mundo gritar.

Pia Tafdrup

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21.10.10

Mais nenhuma foto

Mais nenhuma foto, de certeza que há suficientes.
Mais nenhuma sombra de mim atirada pela luz para pedaços de papel, para quadrados de plástico.
Mais nenhuns dos meus olhos, bocas, narizes, humores, maus ângulos. Mais nenhuns bocejos, dentes, rugas.

Eu sofro da minha própria multiplicidade.
Duas ou três imagens teriam sido suficientes ou quatro ou cinco.
Isso teria permitido uma idéia firme. Isto é ela.

Assim, sou aguada, enrugo, de momento em momento dissolvo-me nos meus outros eus. Vira a página: tu, a olhar, estás novamente confuso. Conheces-me bem demais para me conhecer. Ou, não bem demais: a mais.

Margaret Atwood

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20.10.10

Busca-se um guarda-chuva

Ainda não consigo viajar aos sonhos de um gato.
Nem dormir no centro de um furacão.

Este é um tratado sobre ratos.
Pela esquerda afugento o roedor da insônia.
Pela direita oculto o rastro de uma lembrança.

Se os ratos fecham um olho, escrevo.
Se abrem, levam o que calo.

Há virgens encarnadas que habitam a ratoeira do vazio.
Discurso metódicos que não fazem ninguém feliz.

Amanhece na boca da sede que amanhece na mirada.

A palavra encharca como um guarda-chuva
sob um dilúvio de abraços perdidos.

A solitária palavra se diz sozinha
entre os solos de novembro.

Yadi Maria Henao

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19.10.10

Suposição

Eu não sei ao certo, mas suponho
que uma mulher e um homem
um dia se amam,
vão ficando sozinhos pouco a pouco,
algo em seu coração lhes diz que estão sós,
sós sob a terra se penetram,
vão-se matando um ao outro.

Tudo se faz em silêncio. Como
a luz se faz dentro dos olhos.
O amor une corpos.
Em silêncio vão-se enchendo um ao outro.

Qualquer dia acordam sobre braços;
pensam então em tudo.
Vêem-se nus e sabem tudo.

(Eu não sei ao certo. Suponho-o)

Jaime Sabines
(trad. José Bento)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.10.10

Tarde

Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

Vasant Abaji Dahake
(trad. de Pedro Amaral)

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17.10.10

trago no peito uma saudade antiga
eterno segredo de embalar a ternura num berço de névoa

tenho um pomar que não cheiro
e uma música que não decifro

lá fora mora o medo e uma guitarra despenhada

trago no peito a saudade citrina de amar.

Isabel Mendes Ferreira

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16.10.10

No sótão

Ainda que soubessemos agora
que a tua roupa não seria mais
necessária guardamo-la,
lá em cima, numa arca fechada.

Às vezes lá estou eu, ajoelhado,
segurando-a, tentando reviver
o tempo em que a usaste, recordar
o tamanho real de braços e pulsos.

As minhas mãos descem por dentro
de mangas invisíveis, vazias,
hesitam, depois exibem
amostras da memória:

um feriado verde, um batismo vermelho,
todas as tuas vidas incompletas
definhando através dos verões sombrios,
entrando na minha cabeça como poeira.

Andrew Motion

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15.10.10

Prelúdio

te encontrei como por encanto
num desses acasos
num dia triste de outono

te encontrei assim
numa estrada qualquer

e quando percebi
já caminhava ao teu lado

minhas mãos já eram as tuas
e o peso da solidão havia acabado

os meus passos seguiam em cadência com os teus
tu eras o abrigo, o leite morno, a cama quente
e a vida era um eterno gargalhar.

mas isso foi no outono...
e o inverno não tardaria a chegar.

Lou Witt

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14.10.10

Regresso

E, contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi à aventura de partir e de chegar.

(...)

Manuel Alegre

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.10.10

Da minha janela

Gentis borboletas coloridas
migraram dos meus sonhos despertos
para a janela de onde contemplo
a vida que escorre pelas narinas do tempo

No núcleo das vontades adormecidas
algumas boboletas em voos incertos
ainda estão a bailar aqui e ali
Ora na janela, ora dentro de mim

Úrsula Avner

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.10.10

Grapefruit Moon

Não é fácil resistir a tudo
o que nos roubam.
Tempo, memória, mundo.
Toleramos o insuportável
com insuportáveis venenos.
Até melhor ordem, se houver.

Noutras casas (lembro-me)
éramos mais, bebíamos
apressadamente a juventude.
Mas a vida — chamemos-lhe
assim — separa os que se juntam,
gosta de abismos fáceis.

Manuel de Freitas

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11.10.10


(...) Eu já sou muitas.
Meus olhos, é verdade,
ainda se mantêm amorosamente
indiscretos, e minha alma busca
da palavra as seduções segredosas
que me ardem no peito.

Mas já não me deixo
possuir.

Arriete Vileta

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

10.10.10

Esta noite

Esta noite
no silêncio destas paredes sombrias
cheias de palavras consumidas
a lua dança com gestos de encantamento
e as estrelas sorriem de prazer

Esta noite
invento-te nesta distância magoada
onde as palavras repousam
nos lábios ausentes que riem e se alimentam
de sabores sonhados

Esta noite
arde uma fogueira de nostalgia
e o mistério absorvente da tua luz
entra em mim mansamente

Aqui
longe de ti e de tudo
sinto-me bem dentro de ti
e deixo-me ficar

António Sem

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

9.10.10

Reencontro

E os meus olhos
redescobriram-te
através dos séculos.
E as minhas mãos,
conchas vazias,
encheram-se de sonhos
perdidos nos seixos
lapidados de teu
corpo amado.

Regine Limaverde

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.10.10

Flores & Frutos

Compre na passagem
um ramalhete simples
e enfeite
a sala de visitas

tenha a visão
do jardim de ontem

aspire o perfume
como sonho encontrado
de situações futuras

refaça as flores no vaso
retire as hastes
diminua o tamanho
equilibre a disposição
entenda a beleza
decorrente da combinação

a sala resplandece nas cores
silvestres das flores
e o jardim se faz breve
na efemeridade
da vida e morte.

Pedro Du Bois

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.10.10

Aritmética

... e a maciez de tudo:
um lápis entre os dedos,
dois cigarros,
quatro colheres de
açúcar,
que me amargava o chá
(mesmo de nervos)

Assim já está
melhor: amarga a vida
mas o chá docinho:
luminosa cidreira
entre pregas e rotas
interiores.

Caminho certo
para o coração

Ana Luísa Amaral

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6.10.10

Abismo

Vens a mim, te aproximas, te anuncias
Com tão leve rumor, que meu repouso
Não perturbas, e é um canto milagroso
Cada palavra que tu pronuncias.

Vens a mim, e não tremes, não vacilas,
E há ao nos olharmos atração tão forte
Que tudo desdenhamos, vida e morte,
Suspensos só no brilho das pupilas.

Penetras calmamente em meu viver,
E te sinto tão perto do que cismo,
E há nessa possessão tão funda calma

Que interrogo ao mistério em que me abismo
Se somos dois reflexos de um só ser,
A dupla encarnação de uma só alma.

Enrique González Martínez
(trad. de Renato Suttana)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

5.10.10

Passam ventos de morte...

Passam ventos de morte, passam ventos
Pelos jardins outrora perfumados.
Flores pendidas, mortas, laceradas,
Abrem no chão feridas silenciosas.

Passam ventos de morte. E tudo é tão gelado
E tudo é triste e tudo é desconsolo.
A chuva desce sobre os cemitérios
E leva frio aos mortos esquecidos.

Passam ventos de morte. Trazem velhos
Perfumes de esperanças já vencidas.
Vozes distantes, vozes do passado.

Teu sorriso... Tuas mãos às minhas presas.
Amada... Teus cabelos, teus cabelos...
Teus carinhos que nunca foram meus!

Hélio Pellegrino

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.10.10

Madona da tristeza

Quando te escuto e te olho reverente
E sinto a tua graça triste e bela
De ave medrosa, tímida, singela,
Fico a cismar enternecidamente.

Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.

Com que mágoa te adoro e te contemplo,
Ó da piedade soberano exemplo,
Flor divina e secreta da beleza.

Os meus soluços enchem os espaços
Quando te aperto nos estreitos braços,
Solitária madona da tristeza.

Cruz e Sousa

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3.10.10

Descem as pálpebras sobre
o sono vigilante.

É preciso, amor,
dar um nome a esse instante.

O que em nós sobra
à maré pertence.

Sabem à flor oclusa da resina
as esporas molhadas dos teus flancos.

O nosso tempo, amor. Tempo
líquido sulcado
de submarinas galeras e corvetas.

Há um relógio nupcial parado
suspenso entre nós dois.

Albano Martins

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

2.10.10

Voltei à casa das heras.
A varanda, as paredes, estão carcomidas de bichinhos persistentes e raízes tentaculares. Penetro no escuro, no inóspito do bafio e do sonâmbulo. A velha casa está calada. Abro-lhe as portas, as portadas das janelas, e as réstias de sol arrumam-se oblíquas por entre grãozinhos flutuantes de poeira. Vê-se que lhe dói o esforço de voltar a ser espaço: o chão queixa-se e range sob os meus passos.

Venho ao pátio, de onde se avista o jardim e o cerne das colheitas. A terra está atapetada de velho, no lugar onde antes havia alegria e ornamentação. Volto ao interior da casa, ao seu desconfortável de agora. A antiga grafonola ainda se recorda das canções de há vinte anos. Sento- me, o olhar entrecortado nos retratos empoeirados.

Fico especada, a discorrer sobre o passar das canções: Fauré, Poème d’un jour. Onde se diz do encontro, do estar e do adeus. E neste ouvir, visto velhas memórias, antigos dizeres. Mas agora isto é apenas uma casa com uma história. Com princípio, meio e fim. Ninguém a pode mudar. São irreversíveis as heras da casa.

Se voltar, a história não há-de nunca ser igual.
Faz-me pena o tempo que foi.

Elvira Santiago

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.10.10

Num espaço falso entre o que fui e o que sou
perduram as frases que eu não disse
aqueles gestos que eu não quis fazer
e toda a história da minha vida
que o destino não pôde escrever.

Olavo Rubens

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨