"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

30.6.10

Cinza e frio!

Silêncio…
A resposta que obtenho às minhas dúvidas…

Silêncio…
A resposta às minhas preces…

Silêncio…
A resposta às minhas lágrimas de desespero e dor, de infinita
tortura… são paredes de silêncio e eu, em amargura,
vou levando os dias como quem só já espera a noite
onde me revelo… me deixo ser como sou,
me desnudo diante doutro mundo…
esse mundo sem cor… cinza e frio,
vazio de vida… sequer sentida…
… porque o silêncio ensandece
e eu…
na minha humildade
apenas pedia uma resposta à minha prece…

Mas, vencida, me recolho
na sombra do que quer que tenha sido um dia…
Eu que apenas queria que o meu dia
tivesse cor, Senhor!

BlueShell

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.6.10

Fugaz

Teu vulto ficou preso na porta,
tua mala perdeu-se na rua sem saída,
teu trem partiu para nenhum lugar...

Foste deixando pedaços de alma
por todos os caminhos
numa tentativa fugaz
de perpetuar o vazio
da tua eterna ausência...

Viro a página do livro
e descubro um poema
nunca escrito
e sempre oportuno...

Apago a luz
e acaricio
a sombra da saudade
que, insistente,
deita ao meu lado
e suspira...

Maria Alice Estrella

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.6.10

Seletivo

Quem é você para vender
falsos sonhos e enciclopédias
no terreiro de minha casa?

Tire os seus sapatos:
no meu chão sagrado
só caminha quem tem asas.

Nirton Venancio

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.6.10


Horizontes

Não sei se foi a cor do dia
ou, o barulho de passos
no chão de tábua corrida,
recordando os sons da infância
ou, se foi o gosto da comida
com sabor de almoço de domingo.
Não sei...

Só sei que a saudade,
nem sei bem de que,
brotou funda no peito
e encheu meus olhos d'água.
Senti vontade
de ser um riacho,
correndo livremente
por essas terras
até encontrar
o horizonte.

Maria Alice Estrella

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

26.6.10

Lembranças de gaveta

para sempre o cheiro
do seu perfume
o veludo do toque
e algumas palavras vãs
- que eu mal uso
nessas tardes frias

Beth Almeida

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.6.10

Exílios

Minh’alma tem o estranho hábito de exilar-se
do meu corpo quando sente nostalgia.
E voa em danças estonteantes e foge rápido
e fica distante.

E a descubro, muitas vezes, espreitando debruçada
no contorno da colina da minha juventude, enternecida
e saudosa do nunca mais.

Maria Alice Estrella

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

24.6.10

Nua

A máscara está deposta
desconhece-me
eu sei tudo sobre seu espanto

certamente
não será a última,

já tendo me despido
esqueço-a,

máscaras morrem
quando postas sobre a mesa.

Cristina Bastos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.6.10

Naquela casa tem
uma roseira de sorriso discreto
uma lagartixa que faz companhia às vidraças
um sol por detrás das cortinas
e labirintos de portas fechadas

Naquela casa tem
um homem vestido de versos, de cores e tempo
de sorriso discreto que me enche de sol
por detrás da roseira

E descobre os meus labirintos
como se fosse o vento
que sopra na minha janela

Sheyla Azevedo

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22.6.10

Visto-me para ocasiões, para personagens.

Há mulheres em meu armário, penduradas em meus cabides,
uma mulher diferente para cada terno,
cada vestido, cada par de sapatos.
Acumulo roupas.

Minha maquiagem transborda das gavetas do banheiro,
e há mulheres diferentes para batons diferentes.

Marya Hornbacher

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21.6.10

Alma, moço, é malha delicada
e destramá-la é ofício
de fiandeira ao contrário

alma é vaso
de porcelana chinesa
não vá entorná-la a na mesa
quando puxar a toalha.

Chandal Meirelles Nasser

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20.6.10

Desamarra devagar os últimos laços, como quem se despe,
sem pressa e deixa deslizar na superfície da pele
essa roupa desgastada dos dias.

Cansou de ser outono nos olhos.
Mergulhou e emergiu de novo nome. Batismo de profeta.
O movimento. A mudança.

Na tormenta, sempre se pode andar sobre as águas.
Ou mergulhar nelas,
bem fundo.

Cecília Braga

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

19.6.10

Rezo...

[Que dor, que pétala, que flor!]

Coloco a mão no peito
Bem onde dói e choro
Essa dor ressentida dos dias
O que doerá sempre e nunca brandamente
No balanço das horas findas
A minha dor
A minha pétala
A minha flor
Esse sopro no abismo
Que flutua dentro de mim.

E rezo
Como se beijasse
A indelicadeza das horas.

Cida Almeida

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.6.10

As armadilhas do tempo

Sentada de cócoras na cama, ela olhou-o longamente, percorreu seu corpo nu da cabeça aos pés, como se estudasse as sardas,
e os poros, e disse:
- A única coisa que eu mudaria em voce é o endereço.

E a partir de então viveram juntos, foram juntos, se divertiam brigando pelo jornal no café da manhã, e cozinhavam inventando e dormiam feito um só.

Agora este homem, mutilado dela, quer recordá-la como era. Como era qualquer uma das que ela era, cada uma com sua própria graça e seu próprio poderio, porque aquela mulher tinha o espantoso costume de nascer com frequência.

Mas não. A memória se nega. A memória não quer devolver a ele nada além desse corpo gelado onde ela não estava, este corpo vazio das muitas mulheres que ela foi.

Eduardo Galeano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.6.10

Sonata

O violoncelo encosta a cabeça ao teu ombro
e é um lamento ainda vegetal que lhe sai do sangue
quando o arco rasga o ar, o silêncio, a mão.

Fechas e abres os olhos, há gente a escutar,
as paredes curvam-se e estalam, tudo é frágil,
e a partitura é sempre um pouco além do olhar.

Os dedos levitam sua dureza sobre as cordas,
estremeces amarrada à vertigem da tua
própria queda - nisto se ergue a música.

Também tu não possuis trastos, tacteias
interiormente em busca das notas particulares
e do movimento inspirado.

Há uma demorada e subtil alquimia nesta sala.

E o violoncelo é o imóvel instrumento
da tua trágica, suave aparição.

Vasco Gato

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16.6.10

Desperto mais uma vez pro desconhecido
Brota em mim uma esperança
renovadora

Com traços leves componho o início da obra
num virgem tecido
Não desenho o ontem, nem crio o amanhã,
me entrego despercebido

As nuances radiantes enchem de luz a palidez
do pano emoldurado
A pintura se torna imponente, me traduz ironicamente
me deixa sufocado

Naturalmente calo em mim a razão, a arte me livrou,
roubando meus lamentos
Levanto pro hoje como um quadro em branco,
livre de sentimentos

Marcos Paulo Campos

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15.6.10

Ocasional

Remexo meus velhos guardados
e encontro a jovem que fui
sorrindo amarelo em 3 x 4.

Ah, eu não sei o que aconteceu
mas não me reconheço nas palavras alegres
das agendas que um dia escrevi.

Sinais da idade, minha mãe diria.
Não sei.

Sei que o tempo me deforma o corpo
me risca o rosto
me cansa as pernas
mas não me convence
que aquela no espelho sou eu.

Lilian Dalledone

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14.6.10

Nesta casa – perdida
Alguns sussurros
Largados
Em cada quarto –
Fina crosta de som.

Um toque, um leque
Um passo rente ao chão
Ou sobre o ar.
O largo arco da manhã.

Assim, tão perto
Quase escuto
O soluçar das luzes.

Insones vultos
Ariscos
A transitar…

Vão-se as vozes
Apagadas.
Lucífuga sombra
Numa trágica morada.

Está liberto o silêncio.

Érico Peixoto

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.6.10

Que eu saiba talvez ela fosse mais feliz
que qualquer um
aquela senhora solitária de xaile
no comboio com caixotes de laranja
com o passarinho manso
no seu lenço
e sussurrando-lhe o tempo todo
- mia mascotta
- mia mascotta
sem que nenhum dos excursionistas de
domingo com as suas garrafas e cestos
prestasse qualquer atenção

e o vagão chiava através dos campos de milho
tão devagar que
borboletas
entravam
e
saíam

Lawrence Ferlinghetti

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.6.10

Beijai-me agora, e muito, e outra vez mais,
Dai-me um de vossos beijos saborosos,
E depois, dai-me um desses amorosos,
E eu pagarei com brasa o que me dais.

Com mais dez beijos longos, langorosos,
E assim, trocando afagos tão gostosos,
Gozemos um do outro, em calma e paz.

Eu viva em vós e vós vivendo em mim.
Deixai que vague, pois, meu pensamento:

Não dá prazer viver bem comportada;
Bem mais feliz me sinto, e contentada,
Quando cometo algum atrevimento.

Louise Labé

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11.6.10

Sozinho, em meu esconderijo, convido-o e convido aos outros para entrarem em meu quintal. Há alguma sujeira que de quando em vez, limpo. Quando não limpo é porque não percebo ou percebo e tenho preguiça. Mas quando recebo visitas, minha chama se acende ainda mais. E a felicidade do acolher me dá nova disposição. Trazem-me lenha os que me amam.

Se convido para o meu quintal não é porque a sala da frente seja reservada para outros mais importantes. É apenas porque aqui ficamos mais à vontade, sem cerimônias. Se quiser convidar outros amigos e seus medos, podem vir. Podem vir as esperanças deles também. Há bastante espaço e há bastante tempo para prosas e poesias... E tem mais, a flor rara da montanha distante resolveu morar por aqui. Ela é linda!

Gabriel Chalita

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10.6.10

Coincidente

Sou obrigada a viver comigo mesma.

Mas tornei-me voluntariamente
a soma de todas as idéias de amigos coincidentes,
confidentes, correspondentes.

Sou agora muito grande e já não sei repartir-me
entre os outros múltiplos egos
que tinha antes.

Teresinka Pereira

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9.6.10

Retrato

Cores mortas
Insepultas
Nas paredes
Que o tempo amarela.

Esse retrato – veja
Ainda persiste.

Até quando
Haverá chama
Reclusa
No corpo
Desse olhar?!...

Érico Peixoto

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8.6.10

Cantares

Porque aqui dentro tudo me cabe
Espalho lótus pelos corredores.
Do outro lado da mesa
Meu coração amadurece espinhos
E já não sou essa que sou
Meu coração está plantando farpas.
O que antes era cortina e aconchego
Caiu terrivelmente sobre mim
(sentimento que conheço de antemão).
Antecipo ciúmes e indagações.
A alma lateja, reveste-se de prece
O coração emudece nos corredores da boca.

Jeanne Araújo

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7.6.10

Levarei a tristeza para o sótão
mais a boneca sem olhos e o guarda-chuva roto,
o caderno vencido, a tarlatana velha.
E descerei os degraus com um vestido de alegria
tecido por aranhas sem juízo.

E amor esfarelado no fundo dos bolsos.

Maria-Mercè Marçal

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6.6.10

Maríntimo

Deixa-me ver-te, mar
Que o meu olhar precisa dessa luz
Que o teu azul, em mim, é quem conduz
A sedução
A despertar...

Deixa-me ouvir-te, mar
Eu quero embriagar-me dos teus sons
Tens a cadência dos meus sonhos bons
Só eu te escuto
Podes cantar...

Vem invadir-me, mar
Enche-me as veias de espuma e de sal
Nos meus sentidos deixa um temporal
Que essa carícia me faz vibrar...

Quem sabe um dia, mar
eu possa transformar-me em areal
Desintegrar-me em conchas e coral
e conhecer-te, enfim
sem naufragar...

Ana Vidal

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5.6.10

Fumaça

Quando o medo abre a janela
e se esconde em meu armário
pego a bolsa
fecho a porta
saio para fazer as unhas

Sozinho em casa
o medo vira fumaça

Adelaide Amorim

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4.6.10

Soneto a Helena

Quando fores bem velha, à noite, á luz da vela
Junto ao fogo do lar, dobando o fio e fiando,
Dirás, ao recitar meus versos e pasmando:
Ronsard me celebrou no tempo em que fui bela.

E entre as servas então não há de haver aquela
Que, já sob o labor do dia dormitando,
Se o meu nome escutar não vá logo acordando
E abençoando o esplendor que o teu nome revela.

Sob a terra eu irei, fantasma silencioso,
Entre as sombras sem fim procurando repouso:
E em tua casa irás, velhinha combalida,

Chorando o meu amor e o teu cruel desdém.
Vive sem esperar pelo dia que vem;
Colhe hoje, desde já, colhe as rosas da vida.

Pierre de Ronsard
(trad. de Guilherme de Almeida)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.6.10

Vincos

A luva no bolso
do antigo casaco de inverno
atravessou inerte todas as estações.

Tantas vezes entrou pela janela
o som da água molhando o passeio
enquanto nos vincos do forro de lã reteve
a memória íntima das mãos.

Inês Lourenço

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2.6.10

Mentiras em tempo de groselha

(...)
Esta noite estive acordada, fazia vento,
chuvas fustigavam o castanheiro,
enquanto já vinha o dia,
a noite não tinha trazido paz.

Eu sabia como eram as coisas,
fui dormir e acordei numa manhã de silêncio,
lívida de tristezas.

Não se pode continuar com lamúrias.
As ameixas baqueiam podres das árvores,
no frio quintal as cores envelhecem velozes.

Experimentar tudo sem anestesia, pôr a postos
as panelas e o açúcar, gerir os arquivos, guardar os cacos.

Anna Enquist
(trad. de Fernando Venâncio)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.6.10

chá em chávena chinesa
lençóis de linho
jardins ingleses
sonatas em pianos tristes
damas trágicas

dispenso o cenário da realeza
a nobreza inteira
se resume em uma criatura
- meu chá, lençol, jardim e sonata

o vento do desejo assola
meus pêlos e alma
secretos caminhos
em chama clamam:
o chá, o jardim e a sonata.

Bárbara Lia

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨