"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

30.4.10

Imaginário

Apropriei-me dos sonhos alheios, pois cabiam dentro de mim,
e no molde do meu imaginário
fluíam como aura de luz nas andanças solitárias.

Porém na encruzilhada, quando a ferida sangrou, me dei conta
que já não sabia quem sonhava
se era eu ou o alheio - antes dono do sonho roubado -

Desfiz os planos, embalei encantos, dimensionei fazeres
e segui em busca de outro sonho
que não rasgasse minha cicatriz, que não fosse por um triz.

Márcia Kastrup Rehen

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29.4.10

O violoncelo

Vários são os sons do primeiro dia.

a água que corre.
a colher que bate na chávena.
um leve miar do gato.
o ruído indistinto de quem ainda se entrega ao sono.

vindo de muito perto, o violoncelo.
gemido dolente.
um apelo.
um grito que sobe na escala da angústia.
até à queda na nota grave.

O inaudível som do violoncelo amanhece dentro de mim.
No início do primeiro dia.

Alice Daniel

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28.4.10

Risos

A gaiola esteve fechada por tanto tempo
que um pássaro nasceu lá dentro.

o pássaro ficou imóvel por tanto tempo
que a gaiola
corroída pelo silêncio,
se abriu.

o silêncio durou tanto
que por trás das barras negras
risos e mais risos ecoaram.

Tadeusz Różewicz

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27.4.10

Soletrando a solidão

A dor que sinto não é de vazios

Dentro de mim,
vozes - ternuras
mãos - aquecidas
palavras - ecoantes
promessas - vidas

Dentro de mim,
um rio
uma pedra
uma trilha
uma rua
uma estrela
um apito
um trem
uma aldeia

A dor que sinto é de cheios

Dentro de mim... moradas
Carrego multidões alvoroçadas

A dor que sinto... não é de retalhos

Padeço de inteiros!

Ana Merij

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

26.4.10

Leilão

- Quanto dão? Quanto dão?
- Quem dá mais? Grita mais o leiloeiro.

- Esta bengala de castão de ouro!
(Onde anda sem levá-la o dono antigo?)

- Esta arca colonial!
(Falam dedicatórias de retratos,
falam cartas de amor, a voz trancada.)

- Esta mobília de jacarandá!
(As visitas na sala, o pai, a mãe,
a irmã, a avó cochila no sofá.)

- Este faqueiro de prata!
(Cruzados os talheres, as mãos cruzadas.)

- Esta cômoda do século XIX!
(Soluçam as gavetas; dentro delas,
cheiro de roupa branca e de alecrim.)

- Esta louça azul de Macau!
(A fumaça (da sopa?) na terrina.
Na borda (asa quebrada) desta xícara
os vestígios dos lábios da menina.)

Quem tira as rosas que a moça bota
nos jarros de opaline do consolo?

E a moça presa dentro deste espelho
do toucador do quarto de dormir?

- Quem dá mais? Grita mais o leiloeiro.
Bate o martelo, bate aqui, dói longe.

Mauro Mota

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25.4.10

Visita

Que ela chegue
sem clarins ou trombetas,
entre como facho de luz
pelas gretas da janela
e atravesse o quarto
na sua claridade.

Que ela chegue
inesperada,
como a chuva
na tarde calorenta
e faça subir o odor
de poeira molhada.

Que ela chegue
e se deite ao meu lado,
sem que a perceba.
Que me lave
com água da fonte
e me cubra
com o bálsamo branco
do silêncio.

Donizete Galvão

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24.4.10

Como pintar o sol todas as manhãs

Como pintar o sol todas as manhãs
no jardim onde florescem os lírios
se tenho as mãos vazias
de certezas
e de versos?

Sonho, tão-somente, versos obscuros,
versos lua nova.
Não versos quarto crescente
- a aspergir luar -
acalentados pelo som das harpas
dos anjos com brilhos de mistério
e asas de papel.

Papel de seda... de seda
para vestir e amaciar o tempo
de pintar o sol no tempo dos lírios.

Amaciar o tempo das mãos vazias
e da tristeza à flor da pele.

Maripa

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23.4.10

Continuo a florescer

Uma jardineira descuidada e teimosa
que sou
continuo a florescer
independente da água que às vezes me falta

Denise Chr

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22.4.10

Sou apenas uma sombra
à tona da água do dia

Sou apenas a dor
E o queixume do mundo

Sou apenas espinhos
E gritos entre as ruínas

Sou apenas a ferida
Aberta deste tempo

Sou apenas
Uma flauta soprada pelo vento

Anne Perrier

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21.4.10

89

Sou tão velha que meus amantes
já são nomes de ruas
Sou tão velha que minhas vontades
já estão nuas
Sou tão velha que minhas verdades
já são as suas.

Eu sou do tempo em que se fumava no cinema.

Sou tão velha que minha voz agora
é boa para ler um poema.

Sou livre:
Posso fazer o que quiser que ninguém liga.

Parte de mim
Mora numa foto antiga.

Greta Benitez

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

20.4.10

Mulher com cântaro

Para onde vai essa mulher com o sol
dentro do cântaro
sobre os cabelos, o silêncio

vão devagar
as sandálias, devagar
os pensamentos

em cinza a cor rósea
dos pés, o poço
espera desde o fundo
das águas ancestrais

Para onde
vai essa mulher?

Com amor avança
abrindo no ar
os raios solares.

J. T. Parreira

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19.4.10

Insônia

Um minuto sobre o lado
esquerdo.
Um minuto sobre o lado
direito.
Um pouco de costas,
um segundo sobre o ventre.
Dou voltas no vazio.
Frio nos meus sonhos,
frio na minha cama.

Os ladrões de sono
saquearam a minha noite,
um deles
teve pena de mim
e deixou-me a manhã
na mesa-de-cabeceira.

Maram-Al-Masri

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.4.10

a última vez que te vi partias.
como sempre...

tomaste o caminho do vento
e por lá te demoras...

Isabel Mendes Ferreira

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.4.10

Evanescências...

Dou alguns passos pela estrada prateada no brilho de um
luar. Olho as cercanias envolvidas pelo cinza da cerração
constituída de algodão orvalhado.

Não é tarde, mas a tarde se apressa em chegar no breu
da noite evanescente.

É mais uma caminhada em direção ao nada...

Lá, bem distante, quase que sem vista, a miragem quer
que eu me transforme num órfão da escuridão.

Lá, bem distante, sempre é igual. Penso encontrá-la, mas
novamente seu vulto desaparece no final do túnel da ilusão.

Julio Sampietro

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16.4.10

Essência

há um blues traçado
entre as minhas palavras
e as minhas mãos,
a equilibrar-se frágil como lágrima.

lamento e riso tocam as minhas pálpebras,
ritmo e desconsolo apontam caminhos
entre os meus cabelos.

deixo-me levar.

Silvia Chueire

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

15.4.10

Como pássaros poisando

Há os que optam por fechar os mortos
à chave
nos sótãos ou na cave
da memória

Por mim prefiro deixar os meus à solta
a povoar o meu dia e o jardim suspenso
do meu décimo andar

Como pássaro poisando
como músicas indo e vindo
no vento.

Catherine Dumas
(trad. Teresa Rita Pinto)

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14.4.10

Revelação

Queres saber quem sou?
Eu sou a que te olha e espia para te recolher
e depois guardar num lugar que é só meu.

Eu sou a que mergulha as mãos na tua vida
para sentir a minha voltar.

Pedro Paixão

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13.4.10

Prazo

Ouvi um poema
escrito nas minhas costas
não quis ver quem o dizia
só quis saber que o sentia
sem querer sentir que sabia

Provei as palavras
doces
envenenada a razão
engoli tudo de um trago
com a sofreguidão
de quem tem um prazo
a cumprir, sem atrasos
o tempo a fugir

Reclinei-me na poltrona
velha
ainda lá estou
à espera que a noite venha

Rui de Morais

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12.4.10

Temporais

Minha alma revolta em marés profundas
Vagueia pelo mar da incerteza
Meu coração angustiado
Vagueia pelas ruas da amargura
Que temporal assolou meu coração?
Que temporal devassou minha alma?
O mar da incerteza vai cheio de nada
As ruas desertas de sentimentos
Assombram meu olhar
Espero marés revoltas
Vagas intempestivas

Minha alma é barco frágil
Meus pés estão cansados
De palmilhar ruas sem saída
Becos escuros
Encruzilhadas desertas
Temporais
Assolam
Temporais
Devassam
Em terra ou no mar
Na alma e no coração
Temporais
Se avizinham

Ângela Monforte

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11.4.10

Evanescências

Regresso a pouco e pouco
à calma dos meus dias
sob a sombra do jacarandá

cai uma chuva morna de lilás
sobre um café já frio
e em completa anestesia
distraio-se-me o olhar
em ver passar evanescências

outras cores, o tempo, a gente...

Isabel Solano

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10.4.10

Quando encontrares um homem

Quando encontrares um homem
Que transforme
Cada partícula tua
Em poesia,
Que faça de cada um dos teus cabelos
Um poema,
Quando encontrares um homem
Capaz,
Como eu,
De te lavar e adornar
Com poesia,
Hei-de implorar-te
Que o sigas sem hesitação
Pois o que importa
Não é que sejas minha ou dele
Mas sim da poesia.

Nizar Qabbani

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9.4.10

volto já

a pessoa que me preenchia
saiu.

esperem um momento.

ela volta já.

Nuno Moura

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8.4.10

Para uso diário

Se a vida não fosse tão insubstituível
talvez ousássemos utilizá-la.
Porém arrumamo-la na prateleira
como um vistoso par de sapatos
que é bonito de se ver
mas não para uso diário.
Assim, continuamos por aí sentados
numa expectativa descalça.

Margareta Ekström

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7.4.10

Sim, por favor

Uma mão quente.
Uma casa quente.
Um pullover quente
para cobrir meus pensamentos gelados.

Um corpo quente
para cobrir o meu corpo.
Uma alma quente
para cobrir a minha alma.
Uma vida quente
para cobrir a minha vida gelada.

Sonia Åkesson

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6.4.10

Três donzelas

Três donzelas puras,
Três donzelas, três irmãs,
Três vestidos de noiva bordados.
A mais nova disse
O amor há-de chegar,
Há-de chegar com a manhã.
De súbito chegou a morte
E levou-a.

Duas donzelas puras,
Duas donzelas, duas irmãs,
Dois vestidos de noiva bordados.
A segunda disse
Talvez a morte chegue
E só tu restarás.
Em breve chegou o amor
E levou-a.

E agora eu espero sozinha.

Vorea Ujko

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5.4.10

A última porta

Ela nunca tivera sucesso com os de sua família de adoção,
muito menos com o marido, o filho, a nora,
ou a cunhada.

Entretanto, jamais sobrecarregara ninguém
com o peso de suas emoções pessoais,
pelo pudor de suscitar a piedade.

Jamais falara a ninguém de sua infância.

De sua fome...
primeiro de pão, depois de ternura.

Elisa Lispector

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.4.10

e tu,
vais-te embora? vais-te embora?...

não,
não te vais embora: fico contigo…

deixas-me nas mãos a tua alma,
como um casaco.

Marguerite Yourcenar
(trad. Maria da Graça Morais Sarmento)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.4.10

Cançoneta

Um colarzinho de contas no pescoço,
as mãos sumindo num amplo regalo.
Os olhos passeiam em torno distraídos
e já não têm mais com que chorar.

A seda, que é quase violeta,
faz o rosto parecer mais pálido.
A franja, de cabelos tão lisinhos,
já chega até quase as sobrancelhas.

Não se parece em nada com um voo
esse jeito lento de andar
como se numa jangada pisasse
e não nas pranchas firmes do assoalho.

A boca pálida, entreaberta,
o fôlego cansado, ofegante…
contra o peito treme o ramalhete
deste encontro contigo que não houve.

Anna Akhmatova

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2.4.10

Acalanto para a dor

Hoje guardo os poemas que te fiz
Recolho as rimas, as palavras loucas
Os versos amarrotados amontoo

Hoje desejo o inexplicável
Acariciar o nada, sentir o vazio
Alhear-me de qualquer lamento

Hoje prefiro a imprecisão, o disfarce
Asfixiem os tolos suspiros e murmúrios
Ou qualquer voz que fale de saudade

Hoje embrulho a ilusão, a espera
Engaveto os delírios e quimeras
Lavo-me dos cheiros das promessas

Hoje não me falem de poesia
Emudeçam o sol, vigiem a lua

Silêncio!!!
Minha dor quer apenas dormir...

Fernanda Guimarães

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1.4.10

Sonho...

Entra e tira o teu agasalho.

Está tanto frio...
Entranhou-se-me até quase às raízes do sentir
enquanto te esperava.
Agora que aqui estás, quente que és na tua presença,
conforta-me pois preciso tanto.
Já não distingo o corpo da alma, tal é o estado de algidez
em que me encontro.

Os troncos que pus na lareira riem-se de mim
e recusam-se a arder.
Só o teu abraço me providenciará algum alívio.
Senta-te aqui e recebe-me no teu colo...
Envolve-me com os teus braços e o teu olhar.
Aqueles aquecer-me-ão o corpo e este o coração.

Deixa-me adormecer assim no teu regaço
para que sonhe o que aqui te conto.

Maria João Cantinho

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