"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.8.14


Pedido do dia 

 Ah dia! Clareia meus pensamentos 
mais nebulosos. 
 Refaz a minha esperança perdida. 
 Sustenta o meu ombro cansado. 
 Reduz meus atropelos. 
 Arruma meus erros. 
 Alimenta minhas certezas. 
 Multiplica minha coragem. 
 Abastece meu repertório de alegrias. 
 Seca as minhas lágrimas. 
 Respeita a minha saudade 
 e afaga meu silêncio. 

  Ita Portugal

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30.8.14


Canção da Despedida

Não ri e não cantei: 
fiquei o dia inteiro calada. 
Mais do que tudo queria estar contigo
de novo desde o começo. 
Irrefletida a primeira briga, 
absoluto e claro delírio; 
silenciosa, insensível, rápida, 
nossa última refeição. 

 Anna Akhmátova
(trad. Lauro Machado Coelho) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.8.14


Celebração da Fantasia

Foi na entrada da aldeia de Ollantaytambo, perto de Cuzco. Eu estava sozinho, olhando de longe as ruínas de pedra, quando um menino do lugar, esquelético, esfarrapado, se aproximou para me pedir que lhe desse como presente uma caneta. Eu não podia dar a caneta que tinha, porque estava a usá-la para fazer sei lá que anotações, mas ofereci-me para desenhar um porquinho na sua mão. Subitamente, correu a notícia. E de repente vi-me cercado por um enxame de meninos que exigiam, aos berros, que eu desenhasse nas suas mãozinhas, rachadas de sujidade e de frio, pele de couro queimado: havia os que queriam um condor e uma serpente, outros preferiam periquitos ou corujas, e não faltava quem pedisse um fantasma ou um dragão. 
 E então, no meio daquele alvoroço, um desamparadozinho que não chegava a mais de um metro do chão, mostrou-me um relógio desenhado com tinta negra no seu pulso:

 — Quem me mandou o relógio foi um tio meu, que mora em Lima — disse ele.
 — E funciona bem? — perguntei.
— Atrasa um pouco — reconheceu. 

  Eduardo Galeano

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28.8.14


Vacilo da vocação 

Precisaria trabalhar - afundar -
- como você - saudades loucas -
nesta arte - ininterrupta -
de pintar -

A poesia não - telegráfica - ocasional -
me deixa sola - solta -
à mercê do impossível -
- do real.

 Ana Cristina César 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.8.14


Boneca 

A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio. 
Quem a aninhará nos braços 
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil 
mais frágil que o de pássaro. 
Confia. Assim passiva 
o vento brincará contigo 
franzirá teu avental 
dirá coisas que entendes 
desde a aurora das coisas: 
foste um caroço de manga 
uma forma de nuvem 
ou um galho com braços 
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim. 
Para ser embalada nos braços 
da menina que houver.

Dora Ferreira da Silva

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26.8.14


Abraça 

Não importa se é amigo, conhecido ou distante.
Um abraço forte
Ampara tristezas 
Sustenta lágrimas
Cura corações
Apazigua a saudade 
Suaviza o medo.
Por angústia
Por alegria
Por tristeza
Por felicidade
Por Amor
Abraça!

Cecília Vilas Boas

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25.8.14


Corpo ausente 

 Guardei no bolso o sonho 
Porque nos olhos já não cabia! 
Era grande demais, e os olhos são pequenos... 
O bolso, é fundo e escuro 
Acomoda a eternidade do que é utópico. 

  Cecília Vilas Boas

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24.8.14


Dançando 

Os corpos muito juntinhos
As mãos e os braços trocados
Os passos acertadinhos
Os olhares bem fixados

E temos um par a dançar
Dentro de um quadro de esperança
Que fixa os seres que deslizam
Assim, ao jeito da dança

Ritmados, ao som da música
Os corpos se vão soltando
Sem querer, deixam os sentidos
Trocarem-se assim, dançando.

  Maria Besuga

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23.8.14


Permite-me... 

Hoje, só hoje, permite-me: 

 abrir livros, 
tomar banho nas palavras, 
enfeitar-me de jóias, 
ser cor-de-rosa cheirar as flores, 
andar descalça, 
ser mimada, 
sonhar noutro tempo, 
encontrar-me em local desconhecido, 
ser lamechas. 

 Permite-me hoje, fantasias de diamante 
pois o meu coração é carvão. 

  Mar Maria 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.8.14


por dentro

eu me arrebentei, assim, porque o nó era fraco. frouxo. mal dado. eu afundei, em segundos, porque no meu casco havia um buraco milimétrico por onde o mar entrou, aos poucos. inteiro. eu caí com o primeiro vento porque não havia tijolos. eu era construção mal feita. erguida na pressa. madeira com pregos mal batidos. fachada. eu derreti ao sol porque era de plástico. sumi no sopro porque era pó. eu me quebrei na primeira queda porque, por dentro, não havia mais nada. eu me sentia forte, sem saber que já era oco. 

  Eduardo Baszczyn

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21.8.14


Das cadeiras com asas

É que às vezes eu sento e observo a vida.Tento entender sua beleza mas, ela vem a mim como uma obra de arte difusa e sem nexo. Percebo que é difícil compreender a arte quando não se faz parte dela. Ao estar alheio a vida, compreendê-la se torna algo monótono e confuso. Bom mesmo é entrar nessa arte e colori-la ao seu modo, deixá-la com as forma do seu sorriso, do seu amor. Surpreendente é perceber que não há explicação para o seu Sol que brilha de noite e sua Lua que enfeita o dia. Na sua fantasia você tem os pincéis, então esboce o caminho de volta ou o caminho de ida. O importante é não ficar sentado em sua cadeira vendo a vida passar, a não ser, que nela você pinte asas e atrás dos sonhos você se ponha a voar.

  Roberta Blá

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20.8.14


Mas, era precisamente à hora das refeições que ela já não podia mais, naquela salinha, do rés-do-chão, com o fogão a fumegar, a porta a ranger, as paredes salitrosas, as lajes úmidas; toda a amargura da existência lhe parecia como que servida no fundo de seu prato, e ao fumegar do cozido, saíam-lhe do fundo da alma outros sopros de tédio.

  Gustave Flaubert
(trad. de José Maria Machado)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.8.14


Breve encontro 

Moça por que choras?
Vejo as lágrimas 
secarem teu rosto

Não vês?
Perdeu-se de ti

Quebre seus muros
Deixe um pouco de sonhar
Não é só flutuar 
a vida

Distraia teus enganos
Tens um punhado de promessas nas mãos
O cheiro do teu perfume 
lembrando amor do passado
Deixe-o passar

De uma cor indecifrável são teus olhos
Traga a cor da tua infância
Tome um gole daquela que um dia foi.

Se te encontras ao ferir a ferida
Mergulhes no absurdo
Mas seja breve
Salve-se
Olhe para fora
saia de si.

 Milene Cristina

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17.8.14


preciso de uma coisa tão banal como sentar-me à beira dos meus gatos, pegar num livro, pensar nos amigos com quem não estou, beber um chá ao som de tindersticks ou de spain, escrever um poema, desarrumar um pouco mais a estante dos cds, depois a dos livros, desfazer a cama para dormir - em vez de deitar-me sem ter tido sequer tempo de a fazer - sair para a tarde e fotografar janelas... acordar sem esta sensação de que o dia vai chegar demasiado cedo ao fim e que nem consegui respirar-lhe a luz. 

preciso de (sobre)viver. 

  ana c. 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.8.14


Tiranias

antigamente
diziam: cuidado,
as paredes tem ouvidos

então
falávamos baixo
nos policiávamos

hoje
as coisas mudaram:
os ouvidos tem paredes

de nada
adianta
gritar

 Ruy Proença

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.8.14


Dia sim, dia não, acordava e regava as plantas. Sentia-se viva naquele ato. Via na simplicidade o inteiro. Entregava-se à casa de areia que erguera sobre a cegueira. Preferiu fechar os olhos a aprender que cada folha tem seu tempo. Mecânica, reconheceu-se vazia quando percebeu do alto que seus vasos sumiam na mata. E que só as palmeiras imperiais chegam perto do céu. Seca, rasgou, furou, amarelou, quebrou... Acordou no dia não e lembrou que graveto é bom para fazer fogueira. 

  Claire

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13.8.14


Ervas sobre a planície antiga. 
(Uma canção de despedida) 

Aqui e ali, surgem ervas na planície,
Em cada ano morrem e renascem.
Fogos selvagens queimam-nas, não as matam,
Com o vento primaveril, ei-las outra vez!
A fragrância, longínqua, perfuma a via antiga:
Um feixe de esmeraldas nas velhas ruínas.
É tempo, outra vez, de dizermos adeus,
E do senhor que parte se despedem elas.

Bai Juyi
(trad. Gil de Carvalho)
 
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.8.14


 quando me olho ao espelho não me vejo! nunca consegui ver-me!

primeiro pensei que tinha comprado o ornamento errado, que existiria por aí algum espelho em que me revisse! 

todos os que comprei me foram indiferentes! nunca consegui encontrar-me!

tentei vários formatos, tentei e embaciá-los, lavá-los com sal (dizem que torna a imagem mais pura);

conformada desvio-me, passo rápido, acerto pontualmente as tintas negras com que pinto os olhos mas temo olhar-me directamente com medo de não existir de facto (queria por vezes não querer o não existir) ...

no desespero por vezes ajoelho-me, oro, peço para desejar não ser minha, para que o espelho seja só uma miragem mesmo daquilo que nunca conhecerei completamente! neste espelho! em tantos espelhos! aqui a minha imagem é sempre inacabada e frágil! sou eu ali no reflexo sem nunca ser a verdadeira imagem de mim!

 sophiarui

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

10.8.14


 Não sei se viro
menina, se viro mãe,
se viro todas.
Se viro artista,
Se viro vento
ou viajante
Viro santa
ou viro doida
Quem sabe viro onça
Viro a mesa,
viro o jogo,
viro a página,
viro a vida do avesso
e viro outras
Sim,
eu me viro.

 Yohana Sanfer

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9.8.14


Cartografia do meu corpo 

O meu corpo tem sido muito usado. Tenho sempre arranhadelas, queimaduras, cortes nas mãos, braços e pernas, por causa da cozinha, dos animais, de andar por aí metida a carregar, sempre em frente. 
Também é um corpo muito cortado e cozido várias vezes, em diversos locais, como objeto de intervenções cirúrgicas necessárias e/ou urgentes. 

O meu corpo está desenhado por cicatrizes que mais ninguém tem. Feias. Irregulares.
Acho-lhe graça. Parece-me tão diferente e bonito.
Gosto muito dele e chego a abraçar-me, 
por amor a mim.

De todas, as únicas cicatrizes que me preocupam são as dos olhos, as que não consigo ver. Estão lá dentro. 
Quanto às dos sentimentos e emoções, conto removê-las, uma a uma, durante o tempo que me resta para viver. E quando for, hei-de ir limpinha. 

Isabela Figueiredo

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8.8.14


 Já me esforcei muito na vida pra agradar o mundo
Já engoli muita palavra a seco
Já recuei o passo, já enterrei minhas vontades
Já me abandonei tantas e tantas vezes
Já amputei de mim minhas melhores partes, as cores vibrantes, o traço autêntico que me faz
Mas hoje não!
Hoje não há quem me faça negar meu porão, meu fundo de quintal, minha raiz profunda, meu baú de relíquias mundanas
Não há quem me faça tolher o que sou
Quem pode de mim os galhos mais altos
Quem faça escapar de mim minha intimidade, meu jeito torto de sorrir da vida
Eu me dou o direito sagrado de errar, de fazer minhas besteiras, de viver meus devaneios
Eu me recuso terninantemente a seguir um modelo mecânico programado quadrado
Não há amor onde não reside o respeito à individualidade
Não há nem mesmo indício de felicidade onde o que se é não possa ser de verdade.

Ana Luiza Fireman 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.8.14


O menino que não fez falta 

 “Letraerrada” sumiu naquele dia. Nem perceberam sua ausência. O menino era o oitavo irmão de Anacleto, Berenice, Cleusiane, Doralice, Erivaldo, Francisco e Gervásio. Ele seria a letra H. A mãe queria Hércules, por causa das fotonovelas e filmes antigos que vira em preto e branco. Seria um herói, pensava a mãe nas horas vagas. O pai levou o nome ao moço do cartório. Não era lá tão versado em letras e o registro no cartório saiu como Ércules. Logo o menino ganhou o apelido: o “Letraerrada”. “Letraerrada” era magrelo, mesmo no auge de seus dez anos. Era franzino, com uma pele amarronzada carcomida pelos piolhos. Era pouco desenvolvido. De corpo e de cabeça. Era burro, como dizia seu pai. “Letraerrada” não sorria, não chorava, não pedia nem reclamava. Sempre vítima das maldades infantis dos irmãos e irmãs, tinha medo de tudo, ou quase tudo. Só não temia a solidão. Na pobreza em que viviam “Letraerrada” não brincava, não corria, nada fazia. Vivia sujo pelos cantos observando a natureza. A casa onde morava ficava isolada no meio do sertão de meu Deus. Poeira e desalento eram os únicos vizinhos. Naquele dia “Letraerrada” ouviu de longe uma música alegre. Seus pobres ouvidos desacostumados com as cores da vida não reconheceu o som de um caminhão de circo. Mas lá de longe chegava o tal caminhão, carregando a trupe toda que logo montaria lona próximo à cidade. “Alô amigos, não percam o espetáculo do palhaço Seu Zé e o amigo Chulé, amanhã no novo circo que está chegando”. Assim começava o discurso do som alto que saia do caminhão. “Letraerrada” se encantou. Saiu correndo em direção à música. Parou na beira da estrada e o caminhão passou por ele. O menino não se segurou e saiu correndo atrás do velho carro colorido. Primeiro perdeu o chinelo do pé esquerdo. Deixou pelo caminho, sem arrependimentos. Depois caiu de joelhos na estrada de areia. O sangue logo apareceu, mas ele nem ligou. Levantou e correu novamente. Correu como nunca antes tinha corrido na vida. Correu sem medo, livre, como se deixasse pra trás toda e qualquer tristeza, como se arrancasse do peito toda a angústia e o peso de uma existência sem sentido. Nos lábios algo que poderia ser um sorriso se desenhou. As lágrimas tomaram o rosto de Ércules e ele correu, correu até tropeçar e cair de novo. Dessa vez bateu a cabeça numa pedra. O caminhão foi embora sem tomar conhecimento da perseguição. Ércules caiu sem respirar. Caiu olhando para o céu. Não sentiu nada, como não sentira nada antes na vida. O ensaio de um pequeno sorriso congelou no rosto do menino que não fez a menor falta naquele dia. Ércules foi encontrado no dia seguinte por Berenice e Doralice, meio por acaso, quando saiam para ir à cidade. “Letraerrada” foi enterrado ao lado da casa dos pais. 
Sem música e sem circo.

  Andrea Carvalho

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6.8.14


Madura 

Quando eu fecho os olhos
que não enxergam além das cercas do meu jardim
tenho a impressão que o dia se faz noite
e um vento frio atravessa meu corpo banhado
provocando um arrepio comprido
que começa na nuca
e eu nem sei onde termina.

Muitos anos atrás eu me achava madura
mas não fazia idéia do que era estar pronta.
Agora eu estou.

Ou quase.

  Lilian Dalledone

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5.8.14


 saiu para a rua.
embrenhou-se na espessura da noite,
amou e traiu,
seduziu e deixou-se seduzir,
morreu um pouco todas as manhãs
e nunca mais regressou ao que tinha sido.

 Al Berto

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4.8.14


O Áugure 

Sou um prisma às avessas
as cores em mim se confundem
sou um tapete de ecos
uma cachoeira de gritos
uma cordoalha de muitos tempos

A esfera de lantejoulas
- passado presente futuro -
roda refletindo mil sóis

Sou essa colméia de incêndios
essa assembléia de sinais
esse rumor insone

  Hélio Pellegrino

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3.8.14


domingo à tarde, os olhos secam com o ar seco, o calor intenso e o fumo dos incêndios. é agosto. a cidade deserta. o gato à porta a queixar-se da sombra. Chris Hooson canta "i still think of you". faz-se tarde. sim, faz-se sempre tarde. Chris Hooson canta. acendo um cigarro. ou finjo. tanto faz quando é tarde. arranco o relógio do pulso e ponho o coração à venda. 

  Contraluz

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2.8.14


E eu fiquei! 

 Já me tiraram tanta coisa – e eu fiquei! Numa tarde de chuva levaram meu sonho – e eu fiquei! Sem licença levaram o resto de coragem que eu tinha – e eu fiquei! Acabaram com minhas preces, enganaram minha fé, romperam as novenas – e eu fiquei! Levaram o dinheiro, documentos, certificados, digital – e eu fiquei! Agora que sou o que restou, me tiraram o amor – e eu fiquei!

  Maria Clara de Claro Lira

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.8.14


 ficar no banho
até os dedos murcharem
vai pelo ralo
toda tristeza
do dia

 Alice

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨