"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.7.10

Sábado

Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:
chegar à margem e ter medo da quietude da água.

Antonio Gamoneda

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30.7.10

No jardim

Na densa tarde de quietude mais
os amados silenciam

Suspeitam
da impossibilidade de um bis
(jamais alguém se banha na mesma luz)

Um pássaro descuidado passa e canta
a dizer que viu

Dalila Teles Veras

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29.7.10

Quem sou?!...

Imersa nas brumas de meu interior,
sinto-me múltipla...
uma que chora os ais do amor...
outra que, oculta nas sombras, busca a Luz...
e outras tantas,
que a busca de meu eu conduz
ao infinito do ser;
mesmo assim, permite-me que me iluda
e, coberta apenas pela seda pura, assim desnuda,
estou velada, sou mistério...
sou mister... sou corpo e alma...
sou mulher!...

Carvalho Branco

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28.7.10

Afasta de mim este teu corpo...

Afasta de mim este teu corpo
Mole, triste e violado;
Este corpo que nasceu como uma flor de esponja
Na região sombria das virtudes imperfeitas.
Passaram sobre ele as glórias do mundo
E a força lunática dos destinos incertos.
Passaram como a nuvem sobre a batalha,
Como o vento sobre a paisagem,
Como o vento do mar que envolve a minha casa.

Nesta manhã de chuva, suave Maria.

Joaquim Cardozo

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27.7.10

Sopro de vida

Somos sombras
de qualquer coisa incerta
pedaços de vidro
num grito de alerta.

O toque de um piano
por trás de uma porta
um raio de luz
que sem querer corta
um golpe profundo
que toca na alma
temor escondido
que brinca na calma
e traz o sossego da vida agitada
fazendo uma dança na ponta da espada.

Somos também
um sopro esquecido
de enorme alegria por termos vivido.

Angelo Morgado

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26.7.10

Licença para a terceira idade
(ou: Amarelo, Amarelado, Amarelei...)

onde estão as crianças que viviam nessa casa?
e os brinquedos que aqui ficavam espalhados?
o sol-esperança que entrava pelas janelas?

o tempo passou, a pressa acabou,
agora eu caminho lento, em meio as saudades.

os ipês já não sorriem no mesmo tom de amarelo
os retratos de nossas vidas se amarelaram em sépia
as estrelas brilham amareladas, decadentes e trépidas.

o tempo passou, a pressa acabou,
agora eu caminho lento, tropeçando em lembranças.
sigo serenando. Amarelei.

Beth Almeida

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25.7.10

aberta a porta do mar imenso

a minha mão repousa sobre o teu corpo,
e sei que sou mortal.

nada te dou que seja só meu.

ofereço-te sombras sulcando a beleza das coisas
pedras preciosas de barcos e viagens ao sol
reflectidas na prata do tempo.

flutuam nelas a água da minha solidão
e o imponderável infinito
que nos separa.

terás sido outrora uma chama
que se desfez no meu peito em perfume
de rosas.

maria azenha

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24.7.10

Sequência

toco a teia de ausência nesta tarde
que semelha mais outono
que verão

e o silêncio se me gruda à pele e arde
qual lamento de sem dono
gato ou cão

colhendo fado e infância em cada parte
deste réquiem de abandono
sem perdão

que ora entoo

Márcia Maia

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23.7.10

Abril

Quem me dera voltar ao primeiro jardim!
Conduzida por leões mansos, leões em volta indo e vindo sem as patas esmagarem as madressilvas.

Depois, recostada em tronco antigo da árvore que não existe, ficar alheia. Esquecida, até as estrelas surgirem tal um enxame de abelhas douradas, picando a sombra.

Deborah Brennand

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22.7.10

Relíquia

Era de minha mãe: é um pobre xale,
que tem p’ra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama, já puída e lassa,
deixo os meus dedos p’ra senti-la ainda;
e Ela vem, é Ela que me abraça,
fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe mais perto, mais pertinho,
que eu sinto quando toco o velho xale,
que guarda não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
sinto ao tocá-la como alguém que embale
e beije a minha sede de amor puro.

António Patrício

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21.7.10

Syllepsis

A vida pesou de repente,
tenho cicatrizes expostas
e uma asa quebrada.
Estar vivo é grande responsabilidade
da outra asa equilibrada.
É preciso entender os segredos
e as surpresas que os ventos nos trazem.
Mesmo quando os rabiscos feitos no céu,
nos confundam.

Beth Almeida

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20.7.10

Poema em dó maior

Agora, longe da praça,
dos pássaros, de meus passos,
longe de mim, do passado.
Aqui, no sofá estendido,
silencioso, só, presente,
porvir. Ao fundo,
música, chorinho,
valsa inacabada.
Tudo pequeno,
o mundo, o tempo.
Ou tudo sem fim,
e sem começo,
sem meio.

Agora o sono,
a mariposa insone,
a lua perplexa,
a noite sumindo.

Nilto Maciel

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19.7.10

Sobretudo as vozes

Fazer-se centro e desaparecer. Nem a flor existe fora de um mundo em formação, nem o seu brilho atinge quem é pedra na corrente. Mudar de rumo, amar o que não existe – breve e repetidamente. Sempre só isso. Na flor do cardo, na interrogação de um gato, na busca da justiça. Quando o chão foge debaixo dos pés, há uma música que nos suporta.

Silvina Rodrigues Lopes

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18.7.10

Minha árvore
[fruto vermelho]

continuamos medindo os amantes
as metáforas por dizer
molho as pérolas na pele e desejo
colares de âmbar com o teu rosto
cabelos de seda bailando
sobre olhos aéreos
vou acreditando no verniz das manhãs
nos átomos de sol perfumando o sonho
ainda acordo a roubar a noite
ainda remato o esmalte rasgado
amaldiçoando a memória do perfume.

Graça Magalhães

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17.7.10

photografias

ontem só fotografei rosas
rosas de todas as cores
amarelas brancas vermelhas
rosas de um suavíssimo odor
todas elas com vários nomes de York,
damascenas, empereur du maroc
green rose e até high hopes

dei conta que há rosas quase mortas
em casas a que chamam lares
a maior parte com nome de santos

acho estranho que haja contentores
para esconder a solidão das rosas
sentadas à mesa parecem pessoas
presas a uma cadeira de rodas

observo com tristeza e espanto
que estas rosas são rosas do meu pranto

Maria Azenha

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16.7.10

Breve

Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.
Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.
Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.
Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.

João José Cochofel

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15.7.10

A casa

Desmoronou-se, em dor, aquela casa
que parecia ser antiga e forte.
Agora, ali, prostrada à sua sorte
agoniza no gelo onde se abrasa…

Quem passa não se importa que ela jaza
por terra, espezinhada pela morte.
Ninguém recorda a linha do seu porte,
deixá-la, assim, tombada em campa rasa.

Dos alicerces gritam vozes de alma,
em febril tempestade que se acalma,
querem saber do corpo que era seu.

Agora está no chão, eu sempre soube
que era frágil, erguida só de adobe,
a casa… sombra e cinza que sou eu.

Glória Marreiros

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14.7.10

Só alguns cravos

Nada sei de tílias e carvalhos
agapantos, tulipas, jasmins do Cairo.
Conheço bem urtiga, as locas, o mato
algemas de cipós, liana em laços.

Por sorte, só por sorte ainda guardo,
naquele pote a colônia macerada
— dói a alma, dói e não passa —
lembrando a timidez dos bredos
selvagens.

E, agora para enfeitar uma casa
alva casa entre gramas sem trato
voo pousado, varanda em asas
eu escolhi, só alguns cravos.

Cravos sem sangue, mas… encarnados.

Deborah Brennand

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13.7.10

Jantar

A música estranha
o vinho pálido-branco
o aspargo
a couve-chinesa
(o menu para um a francesa)

Ah!...
como são tristes
os pratos
de porção única
quando há espaço
para dois
na mesa.

Claudia Schroeder

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12.7.10

O quadro

complacente ela se aquieta e espia
não o toca
nada neles diz intimidade

estão ali há séculos
imóveis
sentados
o silêncio retumbando em cores vívidas

Márcia Maia

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11.7.10

De amor ardem os bosques

Há lembranças que matam
há bosques onde os amados vivem para sempre

há um cutelo de água nas fontes
quando as palavras voam para muito longe

há a noite
e os cães que dormem em cordas de sono
em vogais de vento e abandono

há barcos que deslizam no horizonte
muito lentamente
e as estrelas descem por dentro dos mastros
na noite

há uma orquídea azul que se suicida
onde começa o teu nome

Maria Azenha

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10.7.10

sabes, mãe. junto do piano, está uma mulher a escrever
sobre o coração. tem o peito aberto a sangrar numa taça
de vinho. bebermos esta mulher dá-nos sede de água.
é como se ela ouvisse por dentro das teclas. é como se
ouvisse por dentro das mãos.

ao ventre do piano é que o rio começa a ser fundo.
ao fundo do rio, para que seja eterno, é que se escreve
o nome da mulher. vês como as flores adormecem num grito?
e os pássaros cantam nos seus lábios?

é por isso, mãe. é por isso que o amor é um ser fêmeo.
é ao ventre do amor que o piano começa a ser corpo.
as palavras são gotas de orvalho ou meros cristais
invaliosos. é preciso beber o poema gota a gota,
sangrar como uma mulher. é preciso nadar este rio
até ser um poema de mar. é preciso florir um pássaro
na tua boca. é preciso escrever de alma nua.

alice macedo campos

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9.7.10

Fim

faz-se tarde
e eu deixei de esperar-te.

todos os portos se fecham sobre mim
e a floresta adensa-se.

nenhuma clareira se abre à passagem dos
animais e do homem antigo.

são 4 horas na manhã de todos os relógios.

José Agostinho Baptista

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8.7.10

Oração de Clara ao seu jardim

Meu espírito clama pelos poderes cicatrizantes
do amor.

Neles penso, enquanto escurece ou chove torrencialmente
na ravina obscura que atravesso.

Vi levantar-se a ilusão da alegria perene como dádiva.

Que dardo cravas em mim, que assim entenebreço, que nervuras
tão densas me crias, se em ti me perco?

Maria Gabriela Llansol

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7.7.10

Cruel mensagem

Morto foi o sonho de um jardim
Por um verão servil, de cruel mensagem
E eu vi raízes, a vida agonizando,
Na lâmina acesa de um punhal.

Os musgos, as heras, as papoulas,
Manchavam a grama seca.
E lírios, junto ao sangue das rosas,
Magoados eram o pasto

De cavalos alheios e famintos.

Deborah Brennand

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6.7.10

Agora

Agora é tempo
de novamente libertar os pássaros
A grade da noite degelou.
Brilha luz em todas as varetas
flui
desfaz-se.
Para o outro lado resvalam
claras vozes de crianças.
Algo cintilante e solto
flameja
foge.
Atravessa o vidro
deixa vestígios de luz no azul
já longe como se em retorno
o espaço alvo e claro.

Alois Hergouth
(trad. de Celeste Aida Galeão)

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5.7.10

Bendigo os diamantes que respingam na vidraça

Benzi-me de água benta e minha loucura foi perdoada
Ainda pouco fui santa, mas ninguém acreditou
O hábito não me coube / o hálito me queima a fala
Rogo por minha insanidade de volta
Preciso molhar o corpo trêmulo / deitar na terra fria
O céu desaba em mim como remissão dos pecados
Agradeço a chuva ardida cortante feito navalha
Afiada e ácida
Choro

Nesse instante um raio ilumina minha vista
Estou nua de tudo
Só / molhada / louca
E salva.

Márcia Rehen

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4.7.10

Ela deixou o sorriso guardado
numa gaveta da alma
e tentou colar o anel de cristal
com lágrimas e silêncio.

No lenço colocou a saudade,
na mala arrumou os retratos.
E viajou no redemoinho
das emoções naufragadas.

Voltou depois do tempo
e ficou na gare,
sentada,
premeditando ausências.

Só o apito do trem
acompanhou sua tristeza
no olhar parado
de quem mais nada espera
porque tudo aconteceu!

Maria Alice Estrella

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3.7.10

Tuas cartas

Relembro as tuas cartas uma a uma,
Em minha mente todas se gravaram
Não encontro uma só que não resuma
Tudo o que nossos lábios já trocaram.

Tu me escrevias sempre; vez nenhuma
A sua falta os olhos meus choraram.
Morria o sol do estio… vinha a bruma,
- E as tuas cartas nunca me faltaram.

Hoje os dias se passam lentamente
Que me escrevas espero ansiosamente,
Mas com que mágoa vejo que emudeces…

Termina esse silêncio que crucia,
Já que me vai trazendo dia a dia
A certeza cruel de que me esqueces!

Maria Carolina Wanderley

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2.7.10

Condição humana

visto preto e meu marido
é vivo

sou seu lençol
mãe de seu filho ausente

lavo seus colarinhos
não dormimos juntos

juntos
só colocamos
sal nas feridas

Helena Ortiz

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1.7.10

O espelho de água

Meu espelho, correndo pelas noites,
Torna-se arroio e foge do meu quarto.

Meu espelho, mais profundo que o orbe
Onde todos os cisnes se afogaram.

É um tanque verde na parede, e nele
Dorme tua desnudez ancorada.

Em suas ondas, sob uns céus sonâmbulos,
Os meus sonhos se afastam como barcos.

De pé na popa sempre me vereis cantando.
Uma rosa secreta intumesce em meu peito
E um rouxinol ébrio esvoaça em meu dedo.

Vicente Huidobro
(trad. de Anderson Braga Horta)

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