"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.12.15


(...) eu ia te ensinar por que de não em não o tempo se sacia de nós, o tempo nos nega os desejos e nos avilta os sonhos, por que não existe a terra prometida senão em nós, e por que ela está cercada de continentes barrentos e istmos movediços... 

  João Carrascoza
(photo Olivia de Havilland)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

30.12.15


Sortilégio 

 Primeira estrela que eu vejo, 
dai-me tudo o que eu desejo. 
Se o cachorro latir, ele me ama. 
Se a bicicleta passar, ele me odeia. 
Se a porta bater, ele está pensando em mim. 

 Fecho os olhos. 

  Silvana Guimarães 
(photo Sophia Loren)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.12.15


Anéis do meu cabelo 

Se passares pelo adro
No dia do meu enterro
Diz à terra que não coma
Os anéis do meu cabelo

Já não digo que viesses
Cobrir de rosas o meu rosto
(...)
Mas que sempre me guardasses
Os anéis do meu cabelo.

 António Botto
(photo Claire Trevor)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.12.15


A minha amiga

Ao menos tenho a minha fiel amiga 
Nunca deixa de estar ao meu lado 
Fica de noite comigo 
Tem-me em seus braços enlaçado 
Seguro, apertado 
Não me pode deixar 
Veio para ficar 
A minha querida amiga 
Dor

  Yoshira Marbel 
(trad. Carlos Campos) 
(photo Sharon Tate)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.12.15


Prece 

 Dê-me o esquecimento, meu pai. 
 Dê-me uma noite sem sombra 
 ou sobressalto, um sono inteiro 
 um instante sem rumor.
 Dê-me teu silêncio, meu pai.
 A solidez das pedras, o rigor das coisas 
 a solidão sem dor. 

  Maria Esther Maciel
(photo Elizabeth Taylor) 

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26.12.15


 Quem fala do amor? Eu tenho frio
e quero ser Dezembro

Quero chegar a um bosque apenas sensível,
até à maquinaria do coração sem saldo.
Eu quero ser Dezembro

Dormir,
na noite sem vida,
na vida sem sonhos,
nos tranquilizados sonhos que desaguam,
no rio do esquecimento.

Há cidades que são fotografias
nocturnas de cidades.
Eu quero ser Dezembro.

Para viver ao norte de um amor que aconteceu
debaixo do beijo sem lábios de já há muito tempo,
eu quero ser Dezembro.

Como o cadáver branco dos rios,
como os minerais do Inverno.
Eu quero ser Dezembro.

 Luis García Montero
 (photo Mary Charleson) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

24.12.15


Natal

Acende as velas
da árvore de sua vida
para aquecer a família
neste Natal!

Pendure os presentes,
bem amarrados,
e faça uma promessa
a você mesmo
de se libertar
dos passados.

Faça um pisca-pisca
dos seus olhos,
e não dê tanta
importância
às coisas passageiras.
A vida é um festival!

Siga em frente!
Prepare a ponteira
da árvore para indicar
novo caminho,
afinal,
tudo é festa,
nesta noite de Natal!

Ivone Boechat 
(photo Everett Collection)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.12.15


Fantasma

Com os olhos cobertos 
Pela fina renda que caía do chapéu 
Assistia o baile 
Do canto mais discreto da sala. 
Pessoas divertiam-se ao sabor das músicas e bebidas. 
Casais beijavam-se felizes pelo momento único. 
Outros, passeavam, conversavam. 
Tudo estava correndo da maneira habitual. 
E era assim que teria que ser. 
Levantou-se em silêncio 
Retornando para o quadro que pendia na parede. 
Gostava destes rasgos de realidade 
De tempos em tempos. 
Sentia-se viva 
Depois de muito. 

  Gisa 
(photo Bette Davis)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.12.15


Triste

Não consigo compreender.  
Penso e não entendo. 
Reflito sem conclusões. 
Fico aflita. 
Tento, em vão, 
Não procurar respostas. 
Preciso delas. 
Tenho medo que o silêncio me devore. 
Sinto ele próximo, 
Muito próximo. 
Choro. 

  Gisa 
(photo Maureen O'Sullivan)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

20.12.15


A água

Despe, na solidão da tarde, 
Tua roupagem manchada de quotidiano, 
E deixa que a chuva molhe teus cabelos 
E vista teu corpo de escamas de prata. 
Pousa, em teus ombros, o manto dos lagos 
E colhe no cântaro de tuas mãos 
A música dos dias que adormeceram 
No fundo de teu ser. 
Mármores líquidos moldarão teu corpo. 
Nuvem, 
Penetrarás a carne da manhã. 

  Paulo Bomfim
(photo Clara Bow)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.12.15


 Os meus olhos
olham os meus olhos,
para lá da janela
há sombras
suspiros
árvores e rosas.
Dentro da janela,
Só os meus olhos
Olhando outros olhos encobertos.

O silêncio pesa.

Isabel Meyrelles 
(photo Gabrielle Ray)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.12.15


 Com a mala cheia de insultos,
ela guardou as dores no corpo
e vestiu um poema barato.
Restava-lhe abrir janelas.
Era certo que em algum
lugar uma nova vida 
amanheceria. 

 Renata Belmonte
(photo Ingrid Bergman)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

15.12.15


de tanto sonhar
 olhando para parede
 cavou um túnel 
 para outro mundo 
apenas com o olhar 
 atravessou e 
nunca mais se soube dela 

  Marisete Zanon
(photo Veronica Lake)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.12.15


 Não tenho planos, nem promessas, nem
filhos que nos convidem para almoços
de domingo - a minha ideia de família
resume-se a um retrato velho preso numa
gaveta; e do amor possível sei tão-só

o que li nos romances que me salvaram
da desordem quando o meu tempo
andava de ferida em cicatriz. Mas guardo
ainda muitos por estrear para essa estante

que ergueste no corredor como uma casa
nova. E trago portas abertas no coração:

se ainda não sabias, és muito bem-vindo.

Maria do Rosário Pedreira 
(photo Greta Garbo)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.12.15


As Rosas de Saadi

Esta manhã eu quis levar-te rosas, 
Mas tantas eu tinha na cintura presas 
Que os nós cerrados não as puderam conter. 

 Os nós rebentaram. E elas levadas 
Pelo vento no mar foram tragadas. 
As rosas perdidas eu não consegui rever; 

 As águas ficaram vermelhas, como inflamadas. 
Esta noite minhas vestes ainda estão perfumadas. 
Aspira em mim a lembrança de as trazer. 

  Marceline Desbordes-Valmore
(photo Lily Elsie)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.12.15


Os primeiros momentos 

Amo os primeiros momentos da manhã
aqueles momentos que ainda ninguém usou
tão limpos
que deves lavar os pés antes de os habitares
aqueles momentos que cheiram como pétalas de rosa e erva cortada
e encharcam a tua roupa com orvalho

Irás chocar com segredos
descobrir milagres cobertos habitualmente pelo fumo dos autocarros
escutarás puros ecos sussurros e corridas precipitadas

Amo os primeiros momentos da manhã
quando o sol tem um só olho aberto
e o dia é como uma camisa lavada
sem vincos e pronta a usar
aqueles momentos que prendem a tua atenção
por serem tão sossegados 

Coral Rumble
(photo Marilyn Monroe)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

11.12.15


... têm sido assim esses meus dias: 
aperto a mão contra o peito 
e o vazio do mundo me abraça. 

  Flávia Vida
(photo Marilyn Monroe)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

10.12.15


Volto já 

Volto já,
para não calar no peito
as dores, os golpes contidos,
no soturno das noites constantes
nas serranias dos amanheceres
deste mapa de suspiros.

Volto já,
para não arfar sozinho na multidão,
na voragem da poeira das sombras
e nos escombros da alma espancada.

Volto já,
para abrir as janelas dos sonhos
e atravessar o destino pela ponte
que leva aos versos iluminados do amor…

António Carlos Santos 
(photo Frank Sinatra) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.12.15


Arranha-dor

Hoje me rasguei ao meio novamente… Já não é novidade para mim, muito menos para você.

 Confundi o doce com o amargo e, em questão de segundos, não consegui mais reconhecer o gosto que penetrava em minha saliva. Mergulhei em mar raso, superficial – inócuo –, que não demorou a adentrar profundezas e terrenos indesejados. 

 Não queria estar ali, mas você me levou até lá, com sua presença inóspita e seu desafio inadequado… arrastei-me ao porão de suas imundices. E me debulhei em lágrimas. 

 Pelo dito, pelo não-dito e por todas as dores que ficaram engasgadas em meio à garganta e o coração. Pelo violino que você tocou ao pé dos meus ouvidos, desdenhando ao fato de que ele arranhava notas ao contrário e, com isso, perfurava minha alma.

 Preferi me calar… não refutar, afinal, você jamais entenderia. Sussurraria algo ameno para mudar de assunto, porque você só sabe fugir… é apenas isso que você conhece. É tão somente a fuga que te move à vida. 

 Enquanto brinco de me desmanchar, você finge respirar uma espécie de ar seguro. E seguimos, até que não se lance a voz à imensidão. 

  Tatiana Kielberman
(photo Man Ray)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.12.15


Até mesmo em momentos de felicidade e entusiasmo (especialmente em momentos de felicidade e entusiasmo), eu nunca conseguia esquecê-lo por muito tempo. (…) E eu tinha a sensação de que isso nunca iria mudar, de que eu nunca me libertaria.

  Elizabeth Gilbert
(photo Bette Davis)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.12.15


Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades - em excesso de liberdade.

  Maura Lopes Cançado
 (photo Lupe Velez)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.12.15


Silêncio 

 Há muito que Maria Antónia aprendera a calar. Calava a rebeldia, a vontade de cantar inopinadamente, os passos de dança que tendiam a ritmar-lhe o andar. De tanto calar, um dia, emudeceu.

  Maria Eu
(photo Norma Talmadge)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

2.12.15


A olhar-se de dentro de um caleidoscópio, a densa procura dos astros na imensidão partilhada... Eu idêntico e diferente perseguindo a idéia única de ser livre, embora persista a necessidade da prisão dos ''nós".  Eu buscando a fórmula perfeita do pertencer ao meu próprio eu. Eu oposto que atrai, já alimento que sou nessa lógica "órbita" esfera de ação. 

  Lanayash
(photo Audrey Hepburn)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.12.15


Eu costumava conversar a sós com você depois que você partiu. Eu costumava falar com você o tempo todo, mesmo estando sozinha. Conversei com você por meses a fio. Agora não sei o que dizer. Era mais fácil quando eu apenas o imaginava. Eu até imaginava que você me respondia. Tínhamos longas conversas. Só nós dois. Era como se você realmente estivesse comigo. Eu o via, sentia seu cheiro. Eu podia ouvir sua voz. Às vezes sua voz me acordava. Acordava-me no meio da noite, como se você estivesse no quarto comigo. Depois, isso foi lentamente acabando. Já não podia mais imaginar você. Tentei falar em voz alta com você como sempre fazia, mas não havia nada lá. Já não podia mais ouvi-lo. Então eu apenas desisti. Tudo acabou. Você simplesmente desapareceu. 

  Sam Shepard
(photo Marlene Dietrich)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.11.15


Cálice

O meu corpo
como se fosse o cálice
o meu sangue como se fosse o vinho
estas as palavras da vida eterna
até que dure
o sopro que as insufla
do pó em que se desfazem
esse pó que enegrece o cálice
o cálice donde escorre o vinho.

Ana Paula Inácio
(photo Marilyn Monroe) 

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.11.15


Então para os outros sou aquele estranho que surpreendi no espelho: sou ele e não eu, tal como me conheço! Sou aquele estranho que, à primeira vista, não reconheci. Aquele estranho que não posso ver viver a não ser assim, num instante inesperado. Um estranho que só os outros podem ver e conhecer. 

  Luigi Pirandello
(photo Tyrone Power)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

21.11.15


Bilhete 

Fui-me embora, não esperes por mim.
Se alguém der pela falta, diz apenas
que estou bem, continuo a fazer o mesmo
de sempre, trabalho, casa, trabalho, casa.
 
Só não mintas às filhas, diz-lhes que fui
procurar na distância outra forma de solidão,
talvez convencido de que longe de tudo
poderei vir a sentir falta do que já tenho.

 Henrique Manuel Bento Fialho
(photo Montgomery Clift)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.11.15


 Ao lado da janela,
desconhecida dormes.
Com o sono
- ponte de vidro -
E o teu pé nu.
E o ar que te respira
deixa de esperar
o azul da luz do dia. 

 João Camilo
(photo Elizabeth Taylor)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.11.15


Sala provisória 

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como 
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.

Inês Lourenço 
(photo Katharine Hepburn)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.11.15


Sofro de não te Ver

Sofro 
de não te ver, 
de perder 
os teus gestos 
leves, lestos, 
a tua fala 
que o sorriso embala, 
a tua alma 
límpida, tão calma... 

Sofro 
de te perder, 
durante dias que parecem meses, 
durante meses que parecem anos... 

Quem vem regar o meu jardim de enganos, 
tratar das árvores de tenrinhos ramos? 

 Saúl Dias
(photo Hedy Lamarr)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.11.15


Tudo o que perdi

Perdi uma noite de amor em Casablanca,
um reinado perdi, tal como o limbo,
a aposta de viver de coração aberto,
perdi a noite, um autocarro, perdi a vida
como se perde a bolsa num assalto.
Perdi o gosto da ferrugem e da luz,
perdi uma estocada na praia. 
Perdi uma guerra
e a alma, um número de telemóvel
e a fé nas coisas que me importam.
Perdi os olhos, a juventude perdi
num sonho mau.
Tudo perdi. Quanto ganhei.

Violeta C. Rangel
(photo Georgia O'Keeffe)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.11.15


O Aprendiz 

 Sou pobre realmente. 
Tenho apenas algumas folhas de papel na alma 
E uma vontade - digamos, mansa - 
De hipnotizar borboletas. 
Que coisa sei da vida? 
Pouca coisa sei da vida. 
O bastante para não correr. 

  Affonso Manta 
(photo Harold LLoyd)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

2.11.15


Os Mortos 

Amo os meus mortos
Quase tanto como os vivos.
Os primeiros dão-me paz
Os segundos, vigor e alento.
No Natal estou com todos.
Por uns rezo, 
Aos outros, alimento.
A vida faz-se com ambos, 
Até que a morte nos leve 
E nos junte aos que já foram.
Para com eles cuidar 
Da vida dos que aqui ficam,
A lembrar os que partiram!

Helena Sacadura Cabral 
(photo Alice Joyce)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

31.10.15


Receita de Bruxa 

A bruxa malvada, a Urraca,
Raivosa que nem jararaca,
Vingou-se do ogro
Que era seu sogro
Com essa receita velhaca:

Bocejo de pulga
Coceira de cão
Espirro de grilo
Rosnar de escorpião
Rangido de dente
Coaxar de gavião
Lambida de mosca
Soluço de anão.

De cada ingrediente um punhado
E o ogro saiu carregado!
E a bruxa Urraca,
Aquela bruaca,
Dançou contente um xaxado.

Tatiana Belinky 
(photo Veronica Lake) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

30.10.15


 quem me dera
se lá no bar do amor
eu realmente pudesse pedir
uma dose de amor pra beber.

e na oficina esperança
eu entrasse e consertassem
a parte de mim
em que a esperança
está quebrada.

e na relojoaria tempo
eu conseguisse
girar os ponteiros
da minha vida
para o tempo que eu quisesse.

e no borboletário
conseguisse recuperar as
borboletas na barriga.

e no balcão de mapas
me dessem o mapa
que marca
onde ele está.

e no viveiro de pássaros
eu entrasse e saísse
com pássaros que
me pendurassem pela roupa
e me levassem até lá.

 vanessa carvalho
(photo Jean Artur)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.10.15


A física do susto 

 O espelho caiu da parede. 
 Caiu com ele o meu rosto. 
 Com o meu rosto a minha sede. 
 Com a minha sede meu desgosto. 
 O meu desgosto de olhar, 
 No espelho caído, o meu rosto. 

  Cassiano Ricardo 
(photo Corinne Griffith)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.10.15


Vende-se

A casa 
Foi caiada 
Há pouco tempo

Abriga ainda 
O mormaço 
Dos corpos

A penumbra 
Do beijo 
A ecoar

O estio 
E as estações 
Nas vigas nos moirões

No cercado 
A violência do sol

No quintal 
O cheirar das horas

Verdoengas 
Reacendendo 
O tempo

Oh tempo!

Que as janelas 
Cantavam 
E o riso florescia

Na casa

As vozes

E a indulgência do silêncio

Jorge Andrade
(photo Buster Keaton & Sybil Seely)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.10.15


Antimétodo 

Pouco a pouco
Embaralho tudo e nada
Sou meu próprio
Espantalho
Fujo
De mim mesmo
Finjo-me
Da minha própria
Esfinge
Perdido em meu próprio
Labirinto
Sou o que sou
Ou minto? Será isso
Uma regra secreta?

 Sebastião Uchoa Leite
(photo Buster Keaton)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.10.15


Ferida 

fer
ida
sem
ferida
tudo
começa
de novo
a cor
cora
a flor
o ir
vai
o rir
rói
o amor
mói
o céu
cai
a dor
dói

 Augusto de Campos
(photo Ellen Terry)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.10.15


A Máscara da Dama

Quando se vive curto e tão a fundo,
Se chega fatalmente a um impasse:
Não é mais possível estar no mundo
Sem ver a nossa morte face a face,

E a encontramos nas esquinas,
A vemos nos momentos delicados
E até naqueles mais traquinas
Quando ousados subimos num tablado

E fazemos o nosso show de humor
Que a nós mesmos nos espanta
Pois se apresenta negro e quase horror.

Então tudo que fomos se desvela,
Cai a máscara da Dama e desencanta
E um tardio novo mundo se revela...

 Alma West
(photo Brigitte Bardot)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.10.15


Carta para minha namorada 

Eu decorei suas fraquezas, acalmei seus pesadelos.

Conheço histórias de sua infância, dores e repulsas.

Sou sua caixa-preta, sua cópia de segurança, seu diário, seu esconderijo na parede.

Fabrício Carpinejar
(photo Rudolph Valentino & Vilma Banky)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.10.15


Culinária sentimental

Primeiro comete-se um erro. Convém escolher um erro de grande qualidade, dos crassos, mesmo. 
 Depois mistura-se-lhe uma generosa quantidade de culpa e bate-se até formar uma massa de consistência uniforme. 
De seguida, num recipiente separado, recria-se a causa de justificação do erro para atenuar a culpa. 
Junta-se tudo e acrescenta-se uma pitada de falta de imaginação. 
Leva-se ao forno e obtém-se um grande amor. 
 Deve servir-se gelado. 

  Cuca, a Pirata
(photo Desi Arnaz & Lucille Ball)

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29.9.15


Crie laços com as pessoas que lhe fazem bem, que lhe parecem verdadeiras e desfaça os nós que lhe prendem àquelas que foram significativas na sua vida, mas infelizmente, por vontade própria deixaram de ser. Nó aperta, laço enfeita. 
Simples assim! 

  Silvana Duboc
(photo Carlo Ponti & Sophia Loren)

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26.9.15


 Levanta-se
penteia-se
lava-se
enche de água um copito
veste-se
prepara-se
calça-se
beija a quem quer
sem fogo
sem vida
sem alma
deita-se
adormece

 Yolanda Pantín
(photo Clara Bow)

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24.9.15


 Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.

 António Franco Alexandre  
(photo Kim Novak)

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22.9.15


Forasteira

Eu nasci mulher 
E mulher vou caminhar. 
Com meus olhos sagazes, 
Com minhas sardas censuradas, 
Com minha boca enfeitada, 
Com meus seios valentes,
Com minhas coxas atrevidas, 
Com meu sexo forasteiro... 

Eu nasci mulher 
E mulher vou caminhar. 

Com minhas pernas próprias. 
Com minhas pernas sóbrias.

Oswaldo Antônio Begiato
(photo Veronica Lake)

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20.9.15


Falam da falta que eu vos faço e não escutam a música das minhas lágrimas, ligeira, imaterial, música que se esquece dentro do que se vai sendo, como a das canções de amor que me amaciavam a vida. 

  Inês Pedrosa
(photo Dora Ford)

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19.9.15


Ode ao gato 

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria
(photo Anita Ekberg)

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17.9.15


Chorei porque não era mais uma criança com a fé cega de criança. Chorei porque não podia mais acreditar e adoro acreditar. Chorei porque daqui em diante chorarei menos. Chorei porque perdi a minha dor e ainda não estou acostumada com a ausência dela.

  Anaïs Nin
(photo Catherine Deneuve)

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15.9.15


Nunca sequer gostei de refrigerante na vida, mas semana passada fui ao médico e ele proibiu terminantemente de beber. Saindo do consultório, me veio a vontade louca de tomar um gole e sentir aquele líquido gaseificado e aromatizado artificialmente passando pela minha garganta. No outro dia, nada mais já me importava na vida a não ser esse bendito fruto proibido. Eu só tinha olhos para o refrigerante. Só pensava no refrigerante. Acordava e ia dormir querendo refrigerante. Não por gostar, mas por saber que eu não posso. É mais ou menos assim com você.

  Iolanda Valentim
(photo Lana Turner)

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