"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.8.11


De portas & trancas

portas abrem
e fecham

corações também

nem sempre
quem se gostaria
sai

portas fecham
e abrem

corações também

nem sempre quem sai
nos deixa só

nem sempre quem entra
nos tira da solidão

portas e corações
deviam ter trancas
também pelo lado de fora.

Ademir Antonio Bacca

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30.8.11



Ânfora

Esvaziada me deixa a tua ausência
O mundo ao meu redor é um deserto
Vislumbro-te um oásis se estás perto
Romã e cidra é tua imanência

Quando te vais, fontes em mutação
Libertam gotas acres e salgadas
São lágrimas as águas derramadas
Que de mim brotam em desolação

Penetraste, símil, em minha aura
Pintando a cor ideal, a que restaura
Os danos incrustados em cegueira

E a ânfora que eu era estilhaçada
Colada a este amor está restaurada
Voltei, amado meu, a ser inteira

Carmo Vasconcelos

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29.8.11


Tinhas a voz de trigo,
ondulada
e fresca.
Seu corpo era
uma espiga aberta,
um arco tenso,
dúctil e tenso,
uma corda de violino
sequiosa
de música
- ávida e expectante.

Demais. O excesso
gratuito
das guitarras, das
acres, turcas
laranjas.
Incestuosas malhas
tecendo,
fibra a fibra,
a transgressão dos dedos
e dos lábios.

Albano Martins

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28.8.11



Limites

E sinto esta vontade de transpor limites…
… desvendar o abandono,
Vê-lo por dentro.
[Fantasmas “voando em formação”…]
E a bruma e a cerração turvam o quadro,
Pintado a aguarela, essa visão do passado…
E não me revejo nela…
E o ranger das tábuas do sobrado
Conta-me histórias de vidas preenchidas,
Vidas plenas da lida que se leva e leva os dias…
[Fantasmas “voando em formação”…]

Mas nos vidros das janelas
Já não vejo olhares ávidos de ser…
É nelas que o reflexo do presente
Me fere e amordaça… refém dum Tempo
Que já foi… levando a vida de graça.

BlueShell

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22.8.11



Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d' esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

João Roiz Castell-Branco

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21.8.11



Primeiro esqueci o cheiro
E ao acordar já não senti o sabor da sua boca

Depois o corpo tornou-se memória
Em vez de impressão
Esfumado, perdido, inglório

O seu rosto desaparecia
Ficavam quase nem os contornos

E no fim sentia só uma tristeza
De promessa feita e não tornada

Miguel Soares

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20.8.11



Da rotina

Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela casa,
o dia,
que persiste,
quase invisível,
pelo chão,
nos objetos,
sobre os móveis da sala.
varrer amanhã,
o pó de hoje.
varrer.
varrer hoje.
(e domingo
quebrar os dentes
o copo
e sua água de vidro...
segunda,
não esquecer:
varrer todos os vestígios).

Micheliny Verunschk

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18.8.11


Esqueço do quanto me ensinaram

Deito-me ao comprido na erva.
E esqueço do quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio,
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.

Alberto Caeiro

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17.8.11


Cada um com sua sombra

Amanhece.
O sol come a neblina
e começa a pintar
caminhos,
árvores,
casinhas,
bichos,
gente...

E pra cada um
faz uma sombra.

Humberto Ak’abal

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16.8.11



Intervalo

Às vezes,
Todas as dores de uma vida inteira
Gritam...

Às vezes,
Nas mãos, os gestos de perdão
Petrificam...

Às vezes,
As canções dos anjos
Emudecem...

Às vezes,
Os silêncios , numa praia derradeira
Desaguam...

Às vezes...
Só às vezes...

Vera Muniz

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14.8.11



o vazio. como um buraco no peito. um bocado que de lá foi tirado. não dói. é a um tempo suave e amargo. mas não dói. infiltra-se em nós e fica no ar. como algo que devia estar e não está. arrepia-se a pele ao de leve. encolhemo-nos um pouco para guardar o calor de um qualquer momento que em nós ficou. lentamente, o vazio vai sendo preenchido pela rotina das horas. o frio desaparece e deixamos que o conforto nos envolva. até que, vindos do nada, surgem aqueles momentos em que o vazio fala outra vez. baixo. murmura. queremos enxotá-lo como uma mosca incómoda. deixa-se ir. como tudo o que tem a certeza de voltar. quando menos esperamos.

Alice Daniel

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11.8.11



Fim

Talvez no inverno
me tenhas oferecido uma pedra,
acesa, tão acesa que a guardava
ora na mão esquerda, ora na outra.

Viraram-se os dias como páginas,
e a pedra, pouco a pouco, congelando.
O que as minhas mãos juntaram
acabou por ser apenas sombra.

Yao Feng

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9.8.11



Ela - território inexplorado

A pele dela era a sua fronteira.
Por detrás havia um mundo obscuro, cruel,
uma selva selvagem e misteriosa.

Ela, como todos os territórios inexplorados,
atraía e assustava ao mesmo tempo.

Fui eu que a descobri, mas a sua exploração
(nunca fui capaz de falar de conquista) foi custosa.

Só me salvou o meu instinto de conservação.

Guillermo Cabrera Infante

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8.8.11


Douve Fala

Que palavra surgiu perto de mim,
Que grito nasce numa boca ausente?
Mal posso ouvir o grito contra mim,
Mal sinto o hálito que me nomeia.
.
No entanto o grito em mim vem de mim mesmo,
Estou murado em minha extravagância.
Que voz divina ou que estranha voz
Consentira habitar o meu silêncio?

Yves Bonnefoy
(trad. de Mário Laranjeira)

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7.8.11



Envelhecemos, ele a ramagem e eu a fonte,
Ele um pouco de sol e eu a profundidade,
Ele a morte, mas eu a ciência de viver.
Deixava que na sombra o tempo nos mostrasse,
Com riso acolhedor, o seu rosto de fauno.
Gostava que soprasse o vento que dá sombra.
E morrer fosse só, na fonte muito escura,
A água funda agitar, bebida pelas heras,
Amava, estava em pé, no meu sonho sem fim.

Yves Bonnefoy
(trad. de Cláudio Veiga)

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6.8.11



Ao entardecer sentei-me junto de um janela
aberta e li até que a luz se foi e o livro
já não era mais do que uma parte da escuridão.
Eu podia ter acendido facilmente um candeeiro,
mas quis conduzir este dia bem para dentro da noite,
sentar-me sozinho e sossegar a página ilegível
com o fantasma pálido e cinzento da minha mão.

Ted Kooser

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5.8.11



Baterás duas vezes

Baterás duas vezes e eu abrirei
e não quererei acreditar que sejas tu.
Entrarás num andar que desconheces
e que é feito apenas para sobreviver.
E aí me encontrarás, quem sabe
porque estranho desígnio. Entrando
na sala de jantar poderás ver o teu retrato
e os nossos livros. Soará o Nocturno.
Folhearás, quem sabe, Virginia Woolf.
Virei atrás de ti com o desejo
de sentir no meu rostro os teus cabelos.
Sentar-te-ei com infinita ternura
num dos velhos sofás compartilhados
(onde estudavas nos últimos tempos
um longo monólogo de mulher
solitária — o que nunca foste). Espiarei
os teus olhos, o triste sorriso
dos teus lábios amáveis, entreabertos,
e tudo acabará com um abraço
que será o primeiro. Deixará de haver
passado ou futuro. Tudo será lógico.

E este poema nunca terá existido.

Feliu Formosa
(trad. de Egito Gonçalves)

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4.8.11



Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos para trás de nós. Mas o tempo não é o espaço e é o passado que está diante de nós. Deixá-lo não nos distancia. Todos os dias vamos ao encontro daquilo de que fugimos.

Pascal Quignard

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3.8.11



Felicidade entardecida

Anjo branco da minha felicidade entardecida,
quem te deu asas que te dê agora
a paz plana e mansa da terra,
quem te deu fôlego de ave, que te dê agora
a respiração lenta e vegetal do musgo,
a sapiência agreste dos corais e dos limos.
Demorei-me tanto a esperar por ti
que já nem dou pela tua ausência,
pelo vazio de pétalas e rumores
que instalas em redor de mim.
Cobria-me os olhos uma renda desenhada
pelo engenho dos dedos,
tecida pela filigrana das agulhas
e o mundo que via através dela
tinha a palidez de uma doença mortal,
a beleza fragmentada de uma flor
sufocada pelo assédio das areias.
Tu prometias voltar se eu adormecesse cedo
e levavas contigo a felicidade num dardo de vento.

José Jorge Letria

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2.8.11



A ponte

Se me dizem que estás do outro lado
de uma ponte, por estranho que pareça
que estejas do outro lado e me esperes,
eu cruzarei essa ponte.
Diz-me qual é a ponte que separa
tua vida da minha,
em que hora negra, em que cidade chuvosa
em que mundo sem luz está essa ponte,
e eu a cruzarei.

Amalia Bautista

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1.8.11



Leveza Inicial

Sentei o sol e o vento
à mesma mesa: preciso
de aquecer o frio entranhado
na alma que me habita; preciso
de aquecer o peso deste corpo.
Urge em mim a leveza inicial.

José Almeida da Silva

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