"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

30.6.11



Teias

estas malhas que a vida tece
a vida que me enternece
e entristece
e entontece

estas malhas que ato
e desato
e me envolvem
e comovem

e com mãos pacientes
paciente
vou soltando
libertando

transformando.

Maria Rosa Colaço

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29.6.11



Poema da minha idade

Eu carrego dentro de mim,
o peso de uma idade morta,
de uma idade sem definições e sem porquês.
Na minha face extinta,
marcada pelo tempo,
eu trago impressos os instantes envelhecidos,
os momentos mortos,
das coisas belas que me deslumbraram na vida.
Eu trago no meu corpo já sem formas,
vestígios da minha adolescência perdida,
Quando eu era dona dos caminhos,
soberana do tempo e dos astros.
Nos meus olhos já sem brilho,
se reflete o cansaço das viagens longas,
de roteiros intermináveis
e sem pouso certo.
E as pegadas que vou deixando ficar pelo caminho,
vão marcando os dias, as horas, os minutos,
dos momentos que vivi no meu passado,
dentro da minha infância longínqua,
quando eu sabia conversar com as estrelas...

Anilda Leão

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28.6.11



entre a saliva e os sonhos há sempre
uma ferida de que não conseguimos
regressar

e uma noite a vida
começa a doer muito
e os espelhos donde as almas partiram
agarram-nos pelos ombros e murmuram
como são terríveis os olhos do amor
quando acordam vazios

Alice Vieira

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27.6.11



Fadiga

Por aqui ficarei. Pelo menos
vou parar, envolto nesta
branda fadiga, deitar-me à luz
de nenhuma esperança ou
talvez me engane: mesmo já
fora do tempo, do tempo
cronológico, certinho, ainda a
imperecível esperança me
alumia e alumia o mundo.

Urbano Tavares Rodrigues

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25.6.11


estávamos felizes em pleno domingo
a certeza próxima do outro
comida no fogo roupa
já passada
casa nem tão limpa
sapatos num canto
projetos alinhavados

a notícia chegou pelo telefone
apagou o fogo
separou nossos sapatos

notícia maior que a vida

Helena Ortiz

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Sábado

Depois de amanhã
vou recomeçar vida nova:
ao invés de subir pelas paredes
toda vez que a vejo com felicidade
vou descer a pé
ante pé
a ladeira da saudade

Carlos Vogt

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24.6.11



Ausência

Tu ficaste ausente
E na tua ausência
Nada ocorreu
As coisas
Não aconteceram

Não houve o café
Ninguém sentou a mesa
Para conversar
Ninguém abriu a porta da sala
Para as visitas
Tudo ficou silencioso e mudo

Os móveis ficaram
Cobertos de pó e solidão
Os tapetes se recolheram
As flores deitaram mais cedo
E o livro aberto na escrivaninha
Ficou por ler

Não existiram passos no corredor
Nem riso nem choro
Tudo ficou ausente e suspenso
Calado e retraído

A noite não se fez
Ficou vazia e caída
As tardes não aconteceram
Foram apagadas ou riscadas
A madrugada ficou por fazer
Como teias inacabadas das aranhas

Alex Zigar

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23.6.11


Esta casa

Gosto dela assim: ainda vibrante dos passos
que a deixaram a sós comigo
desobrigada
de abrigar seus moradores
Comigo é
diferente:
não me limito a usá-la
a habitá-la:
namoro com ela
Comigo
abandona-se a seus mais íntimos rumores
e cheiros
e aliviada do dever de ser útil
em silêncio
canta

Teresa Rita Lopes

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22.6.11



Tempos e Momentos

Foram tantos os tempos
Foram tantos os momentos,
Acelerei na velocidade máxima
Vivi os tempos.

Nem sempre consegui apreender os momentos:
Não lembro o sabor do primeiro cálice.

Trago no peito a saudade da velocidade,
Piso bem de leve no acelerador
Para contemporizar o momento,
Retardar a despedida.

Mas agora é o tempo que corre célere:
Aproxima-se veloz a linha da passagem.

Dária Farion

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21.6.11


Quando a morte acontece

primeiro, a gente começa uma contagem regressiva esperando a dor aguda e funda passar.

segundo, a gente tenta guiar o monstro da pergunta "porquê agora"?

terceiro, a gente pensa em inventar coisas inesquecíveis com o teu nome, como escreve-lo no mar ou vê-lo desenhado por entre as nuvens.

quarto, você ressurge nas sombras dos corredores, por detrás da porta, no desfolhar de uma roseira, no olhar azul do gato, na sucata que ganhou utilidade de coisa guardada.

e, quinto, só não há maior abandono com a tua perda porque nesse tempo que não volta mais permanecem os cheiros, a memória e o amor.

quando a morte acontece, participam em mim paradoxos.
perda. verdade. poesia.

Sheila Azevedo

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20.6.11



Tarde

Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo, dissecá-lo completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

Vasant Abaji Dahake

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18.6.11



Regresso

Voltei a esse lugar
onde nunca tinha estado.
Do que não foi, nada mudado.
Sobre a mesa (de oleado
aos quadrados) meio vazio
encontrei o mesmo copo
nunca cheio. Tudo
permanece tal e qual
eu o não tinha deixado.

Giorgio Caproni
(trad. de David Mourão-Ferreira)

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17.6.11



Silenciosa
sob a transparência de véus negros...
disfarço marcas tatuadas em minha face.

Meu olhar ausente desmente a dor que vai
na minha alma!

Iracema Zanetti

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16.6.11


Plano Z&B/04

deixou a porta entreaberta
para o caso dele voltar por engano
acendeu-se à luz da varanda
derramou-se em saudade ordinária
: o seu último ato poético

alguém lá fora, quer deixar a vida passar
alguém aqui dentro, tem outros planos.

Beth Ameida

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12.6.11


Da melancolia

Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.

Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
faz-me fechar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar
o rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
a morte

Antonio Gamoneda

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11.6.11


dedos em fuga na impressão da sala

ela costumava andar com os dedos grandes do pé em bico
como se fosse bailarina em pontas
como se pudesse suspender a gravidade das terras e das cadeiras
e se impusesse sem lei por todo o ar
depois circularia por aí como vento
e inventaria a linguagem própria dos mantos
que nunca cobrirão os rostos de uma tez abrilhantada

as rugas a imporem-se
os restos de areia nas unhas já compridas
dedos esguios de magros
a cadeira da sala quieta na ausência dela
era já a hora que se tinha ido
nenhum som
os dedos lá

sophiarui

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9.6.11


Mulher à janela

Está afundada na sua janela contemplando as brasas do anoitecer, ainda possível. Tudo se consumou no seu destino, inalterável a partir de agora,tal como o mar num quadro, e no entanto o céu continua a passar com as suas angélicas procissões. Nenhum pato selvagem interrompeu o voo para oeste; lá longe continuarão a florescer as ameixoeiras brancas, como se nada fosse, e alguém há-de erguer a sua casa algures sobre a poeira e o fumo de outra casa.

Inóspito este mundo.
Áspero este lugar de nunca mais.

Por uma fissura do coração sai um pássaro negro e é noite -ou será um deus caído agonizando sobre o mundo?-, mas ninguém o viu, ninguém sabe, nem aquele que acredita que dos laços desfeitos nascem asas belíssimas, os nós instantâneos do acaso, a aventura imortal, embora cada pegada encerre com um selo todos os paraísos prometidos.

Ela ouviu em cada passo a condenação. Agora não é mais do que uma mulher imóvel, alheada, na sua janela, a simples arquitectura da sombra asilada na sua pele, como se alguma vez uma fronteira, um muro, um silêncio, um adeus, tivessem sido o verdadeiro limite, o abismo final entre uma mulher e um homem.

Olga Orozco

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7.6.11


Atravessar de novo as pontes

Quando o Sol
estende lá fora
o seu véu incendiado,
cuspimos nas mãos
para cavar no deserto
e apenas sentirmos
o que acontece dentro de nós.

Quando a neve
cai muda na língua
da fuga ao discurso
da inutilidade das palavras,
enterramos o peso
das feridas na areia
para ficarmos mais leves.

Só assim podemos
atravessar de novo as pontes
sem pensarmos
nas origens da sensatez
ou no luar que nos assombra
com a energia do cosmos.

Nilson Barcelli

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6.6.11


Quase tudo

Este adeus à tarde sem me cumprir no dia,
este instante em que tento redimir
este vício de não saber partir...
Bastava fechar os olhos à memória
e perseguir a noite. Imensa.
Quase nada. Quase tudo.
E, no entanto, se um gesto não se dobra,
se uma palavra tarda,
desfaz-se o último vestígio da paisagem.

Aurora Simões de Matos

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2.6.11



Espelho louco

Sucedem coisas novas sem cessar,
e já estás fora delas. Faço a barba,
e lembro-me de ti: lágrima larga,
e paro: dos meus fins metade, par
foste dos actos livres; oxalá
tivesses sido mais! Vivo, prossigo
dia de trabalho, e vão comigo,
p'lo caminho, lembrança doce, ávida
falta… Mas que valem lágrimas e
caminho, querida, na solidão?
Realidade, presente, estão aí!
Só teu espelho te guarda, eu, a alma,
espelho que solta as imagens, um tão
louco espelho, que crê bater-te palmas!

Szabo Leirinc
(trad. de Ernesto Rodrigues)

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