"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.1.18


Estar só 

Estar só já não me espanta—
A solidão hoje me é
Contígua.
(Um vaso e a sua sombra).

Companheira espelhada das horas magras, 
Sempre muda, reflexiva. 
Ouso dizer? Meio
Amiga.

O que temo, justamente, é:
Me acostumar de vez
Com essa tímida
Rapariga.

 Lavínia Saad 
(photo Louise Brooks)

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30.1.18


Amor e Medo

Estou te amando e não percebo,
porque, certo, tenho medo.
Estou te amando, sim, concedo,
mas te amando tanto
que nem a mim mesmo
revelo este segredo.

Affonso Romano de Sant'Anna
(photo Phyllis Barry & Ronald Colman)

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28.1.18


Olhas-me 

Olhas-me 
e as palavras multiplicam-se nas palmas das minhas mãos 
nos teus cabelos fundos viaja a minha voz.

Falas-me
 e mares abrem-se 
que se arrepiam de beijos e carícias dos ventos.

E amo-te no infindável meio-dia.

 Dímitra Mandá
(photo Greta Garbo)

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27.1.18


Exegese 

Pobres lágrimas minhas entrando
na esponja sombria do Mistério,
sem tua boca dorida de sedento
abrir em flor como copa de árvore!

Pobre meu coração sangrando
como clepsidra trágica em silêncio,
sem o milagre de bálsamos inefáveis
na venda tremente de teus dedos!

Pobre minha alma tua, arrodilhada
no pórtico em ruínas da memória,
de costas para a Vida, esperando
que um dia talvez o Tempo volte atrás!...

  Delmira Agustini 
(photo Ingrid Bergman)

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25.1.18


Eloquência 

o silêncio fala
às vezes
fala demais
e até fala
o indizível
o que não há
o que não deve

o silêncio por vezes cala

Rosana Chrispim 
(photo Buster Keaton and Rosalind Byrne)

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24.1.18


Canção de embalar 

Dorme
em teu sono.
Por teu coração
passará imperceptível
a noite

levando consigo
as sombras matutinas da hesitação,
os pergaminhos das mágoas diárias,
os flocos da angústia noturna.

De manhã
haverá de novo luz
em teu coração.

 Viatchesláv Kupriyanov 
(photo Frances Dee)

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23.1.18


A ideia do fim 

Não tenho planos, nem promessas, nem
filhos que nos convidem para almoços
de domingo - a minha ideia de família
resume-se a um retrato velho preso numa
gaveta; e do amor possível sei tão-só

o que li nos romances que me salvaram
da desordem quando o meu tempo
andava de ferida em cicatriz. Mas guardo
ainda muitos por estrear para essa estante

que ergueste no corredor como uma casa
nova. E trago as portas abertas no coração:

se ainda não sabias, és muito bem-vindo.

 Maria do Rosário Pedreira
(photo Madeleine Carroll)

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22.1.18


Pequena prece

Pedi-te que partilhasses
pão
e sal comigo.
Assim aos domingos jamais tornaria a temer
o salgado.

Tu porém cantaste na tua solidão
obscuras incompreensíveis
notas.

Apenas te ouvia dizer
o corpo,
o corpo
(da alma casa).

Marigo Alexopoulou 
(photo Melva Cornell)

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21.1.18


Sonho 

Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam -
Flores que não podiam sequer dizer quem eram...
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda um trêmula ponte
Ente nós.

 Purushottam Shivaram Rege 
(trad. Cecília Rego Pinheiro) 
(photo Marlon Brando & Maria Schneider)

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19.1.18


Força

Desmancha o nó,
tira a ferrugem,
espana o pó.
Empurra o pesado,
cola o quebrado,
abre o dobrado,
cerze o rompido,
coça a coceira,
gruda o trincado,
pensa o ardido
e faz brincadeira do verso
chorado;
que a vida é rendeira
de sedas ou trapos,
de rendas, farrapos
ou fios de algodão;
que a fibra é comprida e o mundo
artesão.

Flora Figueiredo
(photo Ingrid Bergman)

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18.1.18


 Não te quero só pra mim
e nem poderia.
Quero-te para ti mesmo
E para a tua própria vida.
Quanto mais fores
O que quiseres
Mais serás o que eu queria.

 Luis Poeta 
(photo Virna Lisi)

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16.1.18


O teu desenho 

Aprendi a desenhar-te,
a ouvir-te
sem ver-te
sem saber-te.

A tua voz
adivinha-me os traços,
revela-me as linhas,
projecta-me as sombras,
enche-me os espaços.

E sem falares
apareces-me,
em figura esboçada,
silhueta,
esfinge,
como beleza desenhada.

 José Gabriel Duarte
(photo Marilyn Monroe)

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13.1.18


guarda-chuva

meu coração tem
forma de guarda-chuva
sob 
ele
es
tás
a
sal
vo

 xilre 
(photo Mickey Rooney & Judy Garland)

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12.1.18


 Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente;
E, neste mundo de enganos,
Fala verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado comigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrário a toda a gente.

 António Botto 
(photo Mirna Loy)

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11.1.18


As coisas lentas

Fumo demasiado depressa o meu cigarro apagado. Os cigarros fumam-se lentamente ao espelho fixando um único dos nossos rostos. Pois bem: na casa só nos cacos há reflexos. Os rostos suspendem-se entre nós e nós, as letras das palavras. Os rostos aguardam-se, observam-se, ao longe. E não há fumo que os evole. Talvez por isso: nunca aprendi a acender um cigarro por ser absolutamente desnecessário aprender a aprender a acender um cigarro. Na casa onde tu fumavas cada cigarro era uma letra. De cada vez que o filtro te tocava os lábios eu perguntava: como te chamas? À superfície do espelho, o teu vagar respondia-me até ao esquecimento de nós. Talvez por isso: tento acender um cigarro. Apago-o antes que me chegue aos lábios.

Está frio neste lugar. A boca abre-se como uma coisa lenta em forma de espanto.

Inês Fonseca Santos
(photo Julie London)

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9.1.18


Só eu me posso julgar. Eu sou o meu passado, eu sou o motivo das minhas escolhas, eu escolho o que tenho dentro. Eu sei quanto sofri, eu sei quanto sou forte e frágil, eu e mais ninguém. 

  Oscar Wilde 
(photo Humphrey Bogart) 

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8.1.18


Quem ama ama. Quem ama só ama. É essa a sua missão, a sua ocupação, a sua função: amar. Sem olhar a como. Sem olhar a porquê. Aliás: geralmente amar, quando é amar, é sem porquê. É simplesmente porque é. Amar, quando começa a concentrar-se em porquês e em comos e em quandos, já não é amar. Amar racionalmente é o começo de não-amar. Se pensas sobre como amas, quando amas e porque amas: então é porque já não amas. 

  Pedro Chagas Freitas
(photo Ramon Novarro & Norma Shearer)

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3.1.18


Minha matur(a) idade

Na minha idade madura, 
a vida a escorrer pelos dedos
Vejo no tempo antigo
Mares em que naufraguei
Fogo em que já ardi
Veredas que já pisei

Na minha matur(a) idade,
alma a transbordar no peito
Sonho o tempo que virá
Lagos de águas tranquilas
Chamas de terno langor
Caminhos de sol e sombra

Sempre eu
Inteira
No tempo de ontem
Ou de amanhã

 Lique 
(photo Brigitte Bardot) 

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2.1.18


Assim será 

Um dia, minhas mãos 
Não vão mais um gesto esboçar... 
Um dia, meus pés 
Não mais tropeçarão no meu andar... 
Um dia, 
Não mais meterei os pés pelas mãos, 
Na vida que me foi dada, 
tirada... 

Um dia, 
Restarão (ainda) os toques sonhados, 
Os passos imaginados, 
A vida que andou 
Pelos meus pés, 
Pelas minhas mãos deslizou... 

Depois de tanta escuridão, 
Assim será – um dia... 

 Dora Brisa
(photo Bulle Ogier)

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1.1.18


Surge a manhã de um novo ano. 

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade 
(photo gif Marilyn Monroe)

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