"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"
Há uma mulher dentro de mim que não é gramática decomposta nem acento circunflexo. Não é metáfora exagerada, nem vegetação espessa no limite da vírgula. Não é anáfora suada, nem rigor maiúsculo no recuo do parágrafo. Há uma mulher dentro de mim que não é periferia nem superfície transversal. Essa mulher que não outra mulher, esmaga-me as telhas no tecto da boca. Tenho-a calada e encavalitada debaixo das palavras mais fáceis de carcomer. Tenho-a cansada e regrada por cima das feridas menos custosas de sarar. Mas essa mulher que dentro de mim não me permite outra habitação que não esta, não me serena a vontade áspera de romper a madeira dos braços, de moer do úmero a lasca e da acha articular outro galho maior. Há uma mulher dentro de mim que não me reconhece como sua. Há uma mulher dentro de mim que míngua encolhida no cavo do medo. Há uma mulher dentro de mim que ama uma mulher insuficiente de si mesma.
Alice Turvo
(photo Dolores Costello)
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Quase um poema de amor
Hoje, também os carros dançam. As casas movem-se levemente. E eu – que mudei de casa e de roupa, de cidade e de cama, de palavras…
Eu, que mudei de música e de carro, de saudade, de quarto… Eu – que mudei de computador e de rua, de eternidade e de paisagem, de abraço e de clima… Eu – que mudei de língua e de lágrimas, de deus e de caderno, de crenças e de céu…
Eu – que mudei de lume, que mudei de medos… Eu – que mudei de planos, de lençóis, de secretária… Eu – que mudei de óculos e de rumo, de amigos, de champô, de rituais e de supermercado… Eu – que mudei de tudo que em quase nada mudou, mudei de dentro de mim para dentro de ti, meu amor.
Filipa Leal
(photo Renée Perle)
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Dor
Não sei quantas vezes chorei
a boneca de papelão
que se desfez na água
quando lhe dei um banho.
Eu não sabia que podem ser tão breves
as coisas que abrigamos no próprio coração.
Graça Pires
(photo Gladys Walton)
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O que me comove, passado tanto
tempo, é perceber que fiz a esse disco
o mesmo que faço e volto a fazer
aos corpos que julgo amar:
parti-los, muito devagar, para
que doam sempre um pouco mais.
Manuel de Freitas
(photo Gloria Swanson)
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Dos estilhaços
As meninas armadas são as mais belas,
têm no coldre uma arma
lotada de munições,
pronta a ser sacada em inúmeras situações.
As meninas armadas não fazem rimas
Dão tiros nos poemas
e mandam autopsiar o corpo para reaverem as balas.
Cláudia Lucas Chéu
(photo Louise Brooks)
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Hoje estou sensível
a qualquer palavra,
a qualquer gesto
a qualquer coisa.
Hoje me limito a não dizer,
a não fazer, ou entender.
Quero somente que minha solidão,
me acalme e me diga o que melhor fazer.
Patty Vicensotti
(photo Greta Garbo)
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A música vem de ti
A música vem de ti
promessa ainda demorada
na luz do tempo
no pó da estrada
A música vem
e chegam também
a urze e o azul
que te precedem
Serás flor na aurora branda
emoção de um lírio por dizer
pedra
corpo
verde e água
na tua boca calada
antes de acontecer
A música vem de ti
Edgardo Xavier
(photo Alice Prin)
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Interrogação
Um abismo imenso
(partícula de alguém)
Uma ferida aberta
(pedaço de alguém)
Uma dor perene
(alimento de alguém)
Um amor intenso
possuído por ninguém.
Joaquim Amândio Santos
(photo Fay Wray)
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El Vaso
Siéntate
a la mesa.
Bebe un vaso
de agua. Saborea
cada trago.
Y piensa
en todo el tiempo
que has perdido.
El que estás perdiendo.
El tiempo
que te queda por perder.
Roger Wolfe
(photo Capucine)
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Não te faças anunciar
Limita - te a chegar.
Pousa o casaco com os bolsos cheios
dessa tua vida mundana,
na cadeira vazia
Descalça - te.
Não quero que os lugares onde estiveste
partilhem os passos que te trazem até mim
Hoje fico em silêncio,
porque essas palavras já não me pertencem
E a ti também não.
Acabaram - se os porquês.
Amanhã não me acordes.
limita - te a sair pela ultima vez.
Ruth Ministro
(photo Dorothy Lamour)
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a minha janela sufoca-me. no meio do corpo descubro o completo desarrumo dos pulmões. a minha janela fecha-me à chave. na tua boca sempre desenhei a pele em sequência de chamas. a minha janela é a chuva da tua saliva morna. a minha janela respira no muro da tua porta. a minha janela morta.
Maria Quintans
(photo Sharon Tate)
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Não sou...
Não sou prisioneira do tempo
Nem ancoro meus sonhos
No solo árido da minha vida medíocre.
Deixo meus olhos flutuarem
Entre céus e infernos
Que a poesia me leva.
Procuro a jóia rara
De um sorriso único
Repleto de angústia e surpresa.
Navego obscura entre
meus medos e meus desejos
sem ter certeza de nada.
Que venha a vida, então,
E penetre em mim
Como um punhal
Rasgando minhas dúvidas
Cortando as amarras
Que me prendem ao possível.
Pertenço a quem me possuir,
Sou do mundo.
Sou minha vida.
Sou o espelho do que jamais serei.
Cláudia Marczak
(photo Mia Farrow)
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Mais-Menos
Quero dizer mais
e digo: mais
Mas cada vez
digo menos
o mais que sei
e sinto
Ana Hatherly
(photo Mae Busch)
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nesta noite tu estás como anúncio
PRECISA-SE
na página gasta da minha pele
Vasco Gato
(photo Tallulah Bankhead)
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pus a mão na boca
para
amordaçar a dor,
mas
era tão mais forte
que
mesmo a mão gritou.
Bénédicte Houart
(photo Ingrid Bergman)
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Celestial
Quando tentei ser santo,
queria apenas ser um santo
sem compromisso
de fazer milagres.
Seria uma espécie de santo avulso,
desses que permanecem
desconhecidos no céu
e que só vêem Deus
de muito longe,
sem direito a carro oficial.
Álvaro Alves de Faria
(photo Eve Southern)
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Atônita
Olho pro céu
nada vejo.
Olhos pros lados
ninguém.
Olho pra baixo
abismos
Olho pra trás
nem um passo
Olho além
muito além
É lá
que eu quero
estar!
Miriam Portela
(photo Romy Schneider)
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Eu
sou o avesso
em vez de ir aprendendo
fui me desfazendo
e voltando ao começo
me livrei da fé
depois de perder a alma no negócio
perdi o amor próprio
e expulsei meu ego a pontapé
perdi a vergonha na cara
e gozei de real prazer e puro deleite
não dei às promissórias da vida o aceite
e me desfiz do que me mascara
fui deixando de lado
a solidão vazia das conversas de salão
entrei de sola com o dedo no cão
e me absolvi de todo o pecado
abandonei os jornais
doei meu gibis a um orfanato
para um asilo a TV e o rádio
e o de menos virou mais
agora tenho a mim
e comigo conto
se a morte é assim
eu estou pronto
Antonio Thadeu Wojciechowski
(photo Robert Taylor)
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Solo
vives solo
comes solo
paseas solo
duermes solo
¿no es un exceso
de ausencia?
seguramente,
pero sólo ahora
entiendo qué es
estar solo
hablas solo
escribes solo
Raúl Ferruz
(photo Buster Keaton)
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Meu endereço sou eu
Queria ser sintética
mas sou prolixa
queria ser complexa
mas sou simples
queria ser moderna
mas sou antiga
queria
não quero mais
sigo
em mim
não há
outro caminho.
Silvana Conterno
(photo Pola Negri)
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Os dois lados
Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho pro trabalho.
Do outro lado tem outras vidas
vivendo a minha vida
tem pensamentos sérios me esperando
na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando
com flores na mão
tem a morte, as colunas da ordem
e da desordem.
Murilo Mendes
(photo by Bert Hardy)
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Banquete
Deixei o meu coração no forno,
é só aqueceres e tens jantar.
O que sobrar dá ao gato.
Eu sempre gostei do gato.
Raquel Serejo Martins
(photo by Nina Leen)
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Isto não é Paris
Isto não é Paris
nem são cinco da tarde
nem chove
nem há cómicos na rua
e tampouco nesta esquina
desta cidade que não é Paris
há um realejo surpreendido
e um pintor boémio
e uma garrafa de vinho
porque às cinco da tarde
esta cidade não é Paris
e não existe um amor curioso
escondido atrás da cortina
enquanto Edith Piaf canta
Les amants de Paris
Nem a recordação do Sena
me leva as minhas memórias tristes
desta cidade sem noite
nem espelhos de mel
e não minto se disser
que Paul Éluard saiu do meu quarto
com asas de melro branco
pela janela desta cidade
que não tem pombas nem bêbados alegres
porque às cinco da tarde
esta cidade não é Paris.
Uberto Stabile
(photo Audrey Hepburn)
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Grita. Grita o mais alto que puderes. Grita de modo a que todos te oiçam, por mais longe que estiverem.
Grita até não haver qualquer réstia de ódio no teu corpo. Grita até o silêncio dos teus gritos vazios ser o único som a ecoar no espaço. Grita até te doerem os pulmões e sentires a cabeça a latejar. Grita até sentires que o teu coração já não passa de um inútil acessório. Grita até perderes todas as tuas forças e seres envolvida por um manto negro que te faz as pernas falhar e te puxa violentamente para baixo. Grita, grita, grita.
Só depois chora,
porque ninguém ouviu os teus gritos.
inês
(gif Ingrid Bergman)
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Savoir Faire
Meu gato preto ignora
que vai morrer um dia
não se agarra à vida
como eu
salta do telhado
leve como o vento
sobe ao tamarindo
e mal o arranha
não o amedronta a passagem das pontes
nem o beco escuro
nem o pérfido lacrau
meu gato preto ama
quantas gatas encontra
não se deixa apanhar
por um único amor
como eu como eu.
Claribel Alegría
(photo Kim Novak & Pyewacket)
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Os sonhos de Helena
Naquela noite, os sonhos faziam fila, querendo ser sonhados, mas Helena não podia sonhá-los todos, não dava. Um dos sonhos, desconhecido, se recomendava:
- Sonhe-me, vale a pena. Sonhe-me, que vai gostar. Faziam fila alguns sonhos, novos, jamais sonhados, mas Helena reconhecia o sonho bobo, que sempre voltava, esse chato, e outros sonhos cômicos ou sombrios que eram velhos conhecido de suas noites voadoras.
Eduardo Galeano
(photo by Francesca Woodman)
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Sinuosidades
quando vi sua hesitação, eu já sabia
é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia
por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?
adorei a ideia
linda tarde a nossa
quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?
pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas.
Raiça Bomfim
(James Dean & Marilyn Monroe)
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Meu Herói:
Pinto as unhas
os olhos
e o coração de preto
Encho o pulmão de fumaça e ar
esperando o dia
em que o Batman
vem me salvar.
Greta Benitez
(photo Marie Bell)
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