"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

30.4.14


Cada vez vejo mais gente 

Cada vez mais, vejo gente
com uma venda
a tapar-lhes os olhos.

Até já vi gente que
afastando-lhes um pouco a venda

 voltaram a colocar correctamente.

Antonio Orihuela 
(trad. Manuel A. Domingos) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.4.14


Lá está. Viu? Atrás daquele monte de compromissos, ao lado das caixas de expectativas não atendidas, bem ali! Em frente à prateleira das desculpas, perto do armário dos medos e suas gavetas de culpas, isso, achou! Bem ali, bem ali tem uma mulher sorrindo. 

 Repara como ela sorri bonito. Lindo, né? É uma moça que escreve, também. Sim, ela escreve. Como? Escreve o quê? Ah, claro. Escreve cartas. Para quem? Para ela mesma, para os outros, para ninguém. Porque tudo o que a gente escreve na vida são cartas, né? Certo é que elas ganham outros nomes por aí, no meio do caminho. Mensagens, recados, missivas, canções, literatura, peças de teatro, receitas médicas. Mas são sempre cartas. E essa mulher que sorri também escreve cartas para o mundo. Nem sempre chegam a seus destinatários, nem sempre têm quem as receba. Mas a moça que sorri a beleza nunca deixa de escrevê-las.(...) 

 Bem ali, entre um problema e outro, intocada e verdadeira, tem uma mulher sorrindo. Repara. Repara como ela sorri bonito. 

  André J. Gomes 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.4.14


Manhã 

Abriu as venezianas. Pendurou os lençóis no peitoril.
Mirou o dia.
Um pássaro fixou-a nos olhos. Estou só, murmurou.
Estou viva. Entrou no quarto. O espelho é também uma janela.
Se saltar dele, cairei nos meus próprios braços.

 Yannis Ritsos

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27.4.14


 Os pratos que me deu minha mãe
estão já sem brilho e fora de moda.
Quando os limpamos
olham para nós como doentes em agonia,
sem entender o que queremos nós deles.

Mas são os pratos que me deu a minha mãe,
que nunca mais me dará coisa nenhuma.

Se um dia nos decidirmos a tirá-los,
decerto ouvirei a sua voz na minha cabeça:
"As coisas, filha, são apenas coisas".

Minha mãe não está num prato.
Minha mãe está no pão que eu como.

 Ana Pérez Cañamares

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26.4.14


O menino grande

Também eu, também eu, 
joguei às escondidas, fiz baloiços. 
tive bolas, berlindes, papagaios, 
automóveis de corda, cavalinhos... 

Depois cresci, 
tornei-me do tamanho que hoje tenho; 
os brinquedos perdi-os, os meus bibes 
deixaram de servir-me. 
Mas nem tudo se foi: 
ficou-me, dos tempos de menino, 
esta alegria ingénua 
perante as coisas novas 
e esta vontade de brincar. 

Sebastião da Gama 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.4.14


O nome do cão

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,
 
mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.
 
Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava
 
ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.
 
Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.
 
Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.
 
Um dia chamamos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.
 
Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.
 
E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.
 
E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: é a vida...

Manuel António Pina

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24.4.14


Esconde-esconde 

Brincávamos às escondidas.
Eu escondia-me
e tu perseguias-me.
Longas horas passaram
e tu não me achavas.
A Primavera passou,
esfumaram-se os longos dias do Verão
e chegou o Outono com seu estalar de madeira seca
e depois o Inverno com sua dor de coração
sepultado na neve.
Espero-te no meu canto
e tenho medo.

Irene Sánchez Carrón 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.4.14


Adoração 

Vi o teu rosto lindo,
Esse rosto sem par;
Contemplei-o de longe mudo e quedo,
Como quem volta de áspero degredo
E vê ao ar subindo
O fumo do seu lar!

Vi esse olhar tocante,
De um fluido sem igual;
Suave como lâmpada sagrada,
Bem-vindo como a luz da madrugada
Que rompe ao navegante
Depois do temporal!

Vi esse corpo de ave,
Que parece que vai
Levado como o Sol ou como a Lua
Sem encontrar beleza igual à sua;
Majestoso e suave,
Que surpreende e atrai!

Atrai e não me atrevo
A contemplá-lo bem;
Porque espalha o teu rosto uma luz santa,
Uma luz que me prende e que me encanta
Naquele santo enlevo
De um filho em sua mãe!

Tremo apenas pressinto
A tua aparição, 
E se me aproximasse mais, bastava
Pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
É uma adoração!

Que as asas providentes
De anjo tutelar
Te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
De ver que me consentes
Olhar de longe... olhar!

 João de Deus

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22.4.14


Sem impressão, sem marca 

Habita-me a dor da tua ausência, nada mais.

E as manchas escuras que buscas em meus olhos
acusam a vigília das horas sem te ver,
a ausência da tua chama,
os séculos que passam sem nada saber de ti.
Sem marca, sem impressão, sem nada corpóreo
a que agarrar-me,
que falta que me fazes até à angústia.

Uma carícia bastava
e o sol de Abril já teria sentido.

Paco Moral 
(trad. Albino M.)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

21.4.14


A última flor do outono 

Sou a última flor do outono.
Embalaram-me no berço do verão,
puseram-me de sentinela ao vento do norte,
chamas vermelhas floresceram
na minha face branca.
Sou a última flor do outono.
Sou a mais jovem semente da primavera morta,
é tão fácil ser a última a morrer:
vi o mar tão fabuloso e azul,
ouvi palpitar o coração do verão morto,
o meu cálice contém apenas a semente da morte.
Sou a última flor do outono.
Vi as profundas galáxias do outono,
contemplei a luz de cálidas casas longínquas,
é tão fácil percorrer o mesmo caminho,
vou fechar as portas da morte.
Sou a última flor do outono.

  Edith Södergran
(trad. Amadeu Baptista) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

20.4.14



Vontade de voltar, 
de ir, 
de não ficar aqui 
e talvez nem lá. 
Vontade de sair 
desse mesmo lugar, 
custe 
que 
custar. 
Desejo incontrolável 
de seguir 
sem saber a direção, 
a localização 
ou o idioma que se fala 
onde eu, 
enfim, 
parar. 
Quero andar até cansar, 
depois correr 
até  (me) perder 
as forças, 
a memória. 
Quero chegar no desconhecido, 
um lugar 
que nem sei onde fica 
e que 
talvez 
seja aqui dentro mesmo. 
Eu só preciso 
ter coragem de 
p a r t i r...
 
Sabrina Davanzo

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

19.4.14


Secreto 

Antes eu não sabia
porque é que se deve
- dia após dia –

andar sempre em frente
até como se diz
o corpo aguentar.

Agora sei.
Se vieres comigo
digo-te.

José Agustin Goytisolo

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18.4.14


Caleidoscópio 

As vezes é preciso
olhar bem
de perto
para ver o que há
dentro
porque há em mim muitas vozes com
rostos inumeráveis.

 Alexandre Magno 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.4.14


Poema das três cores 

Quando os meus olhos ávidos de Luz
Forem luzes azuis e verdes,
 
Quando os meus olhos ávidos de Céu
Forem céus azuis e verdes,
 
Quando os meus olhos ávidos de Mar
Forem mares azuis e verdes,
 
Quando os meus olhos ávidos de Vida
Forem vidas azuis e verdes,
 
Quando os meus olhos ávidos de Tudo
Forem todos azuis e verdes,
 
...  Então que venha o Sonho cor de rosa!

  Carlos Macedo 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.4.14


Decepção à regra

Sentar-me e ver os outros passar é o 
meu exercício favorito. Entretém. 
Não  esgota. 
É gratuito. Neste meu jogo-do-não 
são os outros que passam
 (é aos outros que reservo a tarefa 
de passar).  Lavo daí os pés. 
Escrevo de dentro da vida. 
Pode até parecer que assim não
 chego a lugar algum mas também quem
é que quer ir
 ao sítio dos outros? 

  João Luís Barreto Guimarães

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

15.4.14


Para os anos dele 
  
Sei qual é cor em que prefere calçar-se.
Sei qual é a cor em que prefere vestir-se.

Porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.

Portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir, qual é a tua cor preferida para acordar?

A cor dos teus olhos, respondeu-me. A cor da tua pele.
Não fui à procura. Não necessito de andar à procura para saber que

não existe nenhuma loja que venda edredons nessas cores. Não há outra solução a não ser dormir

com ele para sempre.

  Tjiske Jansen 
(trad. Maria Leonor Raven-Gomes) 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.4.14


Não há quem não feche os olhos ao comer, não há quem não feche os olhos ao cantar a música favorita, não há quem não feche os olhos ao beijar, não há quem não feche os olhos ao abraçar. Fechamos os olhos para garantir a memória da memória. É ali que a vida entra e perdura, naquela escuridão mínima, no avesso das pálpebras. O rosto é uma estrutura perfeita do silêncio. Os cílios se mexem como pedais da memória. O passado sem os olhos fechados é como uma roupa enrugada. Sem corpo. 

  Fabrício Carpinejar

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.4.14


Se fosses vivo hoje seria o teu aniversário - e todas as árvores chamariam o teu nome neste dia de abril em que os pássaros não voltam - talvez por teres morrido já nem abril é o mesmo. já não há sol e as nuvens aquecem os olhos - faz anos que não te abraço. nem me dizes baixinho ao ouvido que tudo vai ficar bem. como pode ficar tudo bem sem a tua pele tão velha a ensinar à minha como construir vida - já o mês acabou e até o dia mas a tua memória permanece a bater-me no coração.

Margarete Silva 

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.4.14


Inventei a dança para me disfarçar. 
Ébria de solidão eu quis viver. 
E cobri de gestos a nudez da minha alma 
Porque eu era semelhante às paisagens esperando 
E ninguém me podia entender. 

  Sophia de Mello Breyner Andresen

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

9.4.14


paix... 

 tem certos momentos na vida da gente em que a única coisa que nos apetece é um pouquinho mais de paz pousando suavemente em nossos ombros... 

  flávia vida

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.4.14


A Adiada Enchente 

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.

  Mia Couto

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.4.14


Sabia o seu nome. Chamava-se Eva. Nunca questionara. Porque haveria de questionar um nome simples e breve? Desconhecia o texto bíblico, e  o simbolismo das palavras. Se se chamasse mar, ou cálice, ou manhã, não o questionaria. 

  Filipa Leal 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.4.14


Quando acordaram de manhã, na mesma cama, ela disse-lhe que queria ter um passado com ele. Não era um futuro, que é uma coisa incerta, mas um passado, que é isso que têm dois velhos depois de passarem uma vida juntos. Quando disse que queria ter um passado com alguém, queria dizer tudo. Não desejava uma incerteza, mas a história, a verdade. 

  Afonso Cruz

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

5.4.14


Insisto num rosto efémero 

Do outro lado do disfarce,
insisto num rosto efémero.
A que punhal ou perigo me insinuo?
Sou o encontro adiado,
neste prenúncio de muros
ou de mãos indomáveis.
Quero, no reverso da névoa,
onde não dancei os sonhos,
um teatro de papel.
Diante da muralha da noite
ensaio as sombras sob as pálpebras
e altero o nome das cantigas
que me circulam no sangue, em sobressalto.

  Graça Pires

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4.4.14


Então um dia você acorda decidida. Levanta, troca os lençóis, toma um bom banho, corta e pinta o cabelo, faz as unhas, lava as roupas e pratos acumulados, arruma a casa, coloca tudo em seu devido lugar. Faz uma arrumação no armário, doa boa parte das roupas, customiza outras tantas, muda de estilo, se arruma e sai de casa. Vai à praça que gosta, deita na grama, olha o tempo passar, respira o cheiro da natureza e observa com alegria a chuva anunciada. Chega em casa ensopada, toma banho, coloca o pijama favorito, deita, dorme e no dia seguinte continua deitada... E no outro... E no outro... E no outro... 

  Malka Lima 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.4.14


Algodão doce 

 Todas as noites, antes de me deitar, eu fico nua e passo uma folha de alfazema pelo corpo. Separo o dedal, as agulhas, os fios e o cetim e começo a remendar os vestidos que vou usar para você. É vestimenta antiga, vem de lá longe, meu tempo de mocinha. Em alguns eu já trabalhei tanto que eles até parecem novos. Tudo pra te fazer feliz. Todas as noites, depois do perfume, eu abro a porta do quarto. Você entra de mansinho, aponta para um daqueles vestidos, eu fico bem bonita, nós saímos de mãos dadas e vamos comer algodão doce na frente da igreja do Bom Jesus. Todas as noites eu faço de conta que você não me deixou. Então pára tudo, pára o relógio, a respiração, o coração. Até o tempo pára, meu amor, esperando que, se um dia voltar, você não note que essas roupas escondem tantos buracos dentro e fora de mim. 

  Almir Feijó

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2.4.14


Preparativos de viagem 

 Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao dicionário e tiro as palavras que me servirão de passaporte: o equador, uma linha de horizonte, a altitude e a latitude, um lugar de passageiro insistente. Dizem-me que não preciso de mais nada; mas continuo a encher a mala. Um pôr-do-sol para que a noite não caia tão depressa, o toque dos teus cabelos para que a minha mão os não esqueça, e aquele pássaro num jardim que nasceu nas traseiras da casa, e canta sem saber porquê. E outras coisas que poderiam parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase indecisa a meio da noite, a constelação dos teus olhos quando os abres, e algumas folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência me vem ditar. E se me disserem que tenho excesso de peso, deixarei tudo isto em terra, e ficarei só com a tua imagem, a estrela de um sorriso triste, e o eco melancólico de um adeus. 

  Nuno Júdice

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1.4.14


Beija-me 

 Beija-me 
Sobre a areia fria, húmida do mar, 
No sal da espuma alada 
Que afaga de onda em onda os nossos pés, 
No cintilar das estrelas álgidas, solitárias na noite, 
Sobre os ossos lisos de corpos esfacelados e sangrentos. 
Ajuda-me a lutar, 
Envolve-me em teus braços 
E deixa-me chorar a minha solidão 
E a tua. 

  Teresa Balté

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