"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

28.2.13


 
 Amo não só o hoje perfumado de teus olhos 
mas a menina oculta que lá dentro 
olha a vastidão do mundo com redondo 
sobressalto, e amo o cinza estranho que me lembra 
num cantinho de tempo que o inverno 
ampara. A multidão de ti, a fuga das tuas horas, 
amo as tuas mil imagens em voo 
como um bando de pássaros selvagens. 
Não apenas o teu domingo breve de delícias 
mas também uma sexta-feira trágica, quem 
sabe, e um sábado de triunfos e de glórias 
que eu não verei jamais, mas que elogio. 
Menina e moça e jovem já mulher, 
 todas tu, enchem o meu coração, e em paz as amo. 

  Eliseo Diego
(trad. Amélia Pais)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.2.13


A minha cama tem saudades tuas, deitado no lado esquerdo que é só teu; A minha cama tem saudades do teu corpo quente enroscado no meu, pequeno, de menina, a olhar os teus olhos redondos, negros, onde descanso os meus; A minha cama tem saudades do teu acordar lento, tardio, dessa tua ronha que me dá tempo para preparar gominhos de tangerinas que depois te dou, um a um, entre beijos doces. 

  Felisbela Fonseca

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26.2.13


 
A solidão 

é saber que nunca mais

n
u
n
c
a

m
a
i
s

te vejo.

 Sofia 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.2.13


Regressamos sempre aos velhos lugares aonde amamos a vida. 
E só então compreendemos que não voltarão jamais todas as coisas que nos foram queridas. O amor é simples, e o tempo devora as coisas simples.  No fim de contas a tristeza é a morte lenta das coisas mais simples.

  Eduardo Agualusa

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24.2.13


Eu pedi 

Não sabia
Mas podia acontecer
Não é tristeza
Mas desilusão
Será?
E o que resta?
Solidão, tristeza?
Sei lá!
Amargura... Incerteza
Que fazer?
Persistir
Ou desistir?
Ah! Se fossem só palavras...

Graça da Hora 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.2.13


 A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: Não há mais que ver, sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com Sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava.

É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.

 José Saramago

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22.2.13


Quase verão 

Há uma chuva negra e macia na vidraça. Quase cinza, um tanto fraca... me acaricia.

Pingos me olham – esperando o chão cegar. Chegar. E o desespero do que chove no mesmo lugar. E a nuvem que se move... sobre as palavras... que eu não te dei.

Negra na janela, esperando o chão.

Sou eu quem chove – antes do verão...

Sou eu quem grita! – ao perder teu rosto de areia, entre minhas mãos...

 Leila Krüger

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21.2.13



hoje estou líquida.
tento fechar-me em copas,
copos...
mas me derramo em quartos e camas.
inundo travesseiros e poemas...
transbordo com as canções.
ainda ontem eu era sólida,
em pensamentos e posturas,
atos e convicções.
na firmeza das idéias,
na certeza das conquistas.
existia.
anteontem fluía etérea.
sem forma ou peso.
sem rumo.
ocupava todos os espaços.
no frescor, sonhava.
hoje estou líquida...
... porque os estados do espírito mudam
com a força - ou ausência - dos ventos.
com a alternância das marés.
com os ciclos da lua.
com o tempo.
é chegada a hora de cortar os cabelos.

 Paula Quinaud

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20.2.13


Funeral

Derramem sobre minha pele
um jarro de perfume suave
e esperem a noite chegar.

Durante a noite enfeitem
o meu corpo com tintas claras;
o leito de morte
com as flores mais meninas,
fecundadas em afetuosos toques
pelo vento brejeiro,
cuja gentileza se fez semeadura
por entre meus cabelos
e cuja brandura, 
obrigação cotidiana nossa,
amantes que fomos.

Deitem minha carne na jangada.

Estarei então pronto. Ateiem-me fogo.
Aquecido partirei
nos curtos braços do amor.
Com meu corpo em chamas
descerei a correnteza do rio até me consumar. 

 Oswaldo Antônio Begiato

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19.2.13


 Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira.
Nunca antes me interessou que uma flor tivesse cheiro.
Agora sinto o perfume das flores como se visse uma coisa nova.
Sei bem que elas cheiravam, como sei que existia.
São coisas que se sabem por fora.
Mas agora sei com a respiração da parte de trás da cabeça.
Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira.
Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.

 Alberto Caeiro

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18.2.13


Dor bailarina

baila no meu peito
uma dor, anda, pula
deita, dança, baila dor,
bailando nos lábios,
dor bailarina
anda vem menina
dançar comigo
atrás da cortina
anda vem menina
deitar comigo
que a noite termina
anda vem comigo
ou de uma vez por todas
me elimina

 Alice Ruiz

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17.2.13


Tanto silencio... 

É no silencio que te encontro,
escondida em salas vazias e sem cor.
É na calma do entardecer que embalo
as saudades do teu sorriso rasgado
que me envolvia como uma criança feliz.
E nos canto da solidão nego e renego
que alguma vez tenha tido a opção de ter...
inteira... sublime... minha e só minha.
Porque só assim consigo olhar em frente.

Como pude deixar...

Como deixei que o tempo me turvasse a alma
perdida em questões distantes,
quando tu estavas tão perto, e eu não te ouvia.
Como deixei que as horas passassem
e os risos e lagrimas se perdem-se para sempre
porque o urgente era nada,
e o teu toque uma certeza eterna.

Como não vivi?!?...

E agora... É nesse mundo de certezas absolutas
de momentos demasiado efemeros que me encontro...
repousando na saudade e na ausência
envolto nos bilhetes amarrotados que trocamos um dia.

Tantas palavras, tantas promessas e tantos sonhos!
E tanto silencio...

 António Silva

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16.2.13


 Estou cansada.
Cansada de lutar contra esta corrente.
Mas eu não quero ir. Deixem-me aqui. A esperar...
Luto por algo que nem eu bem o quê.... talvez contra mim...
Não quero amar, não quero que me amem . Tenho medo...
Mas a verdade é que a solidão me destrói aos poucos.
Nunca quis esta vida para mim, no entanto, é mesmo isto que tenho. Uma vida vazia.

Nunca quis tornar-me nisto, fria.... distante... sozinha... amargurada. Vão-se embora, todos voces que me dizem que tudo isto vai passar que me dizem para não ser parva, que me dizem que sabem como é, que compreendem... Compreendem o quê?... Calem-se por favor... como podem comprender o que nunca viveram? Espero que nunca vivam...

Vitó

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15.2.13


Um rosto

Abriram-se as cortinas da cidade,
a nudez foi presença nas ruas acorrentadas.

sobraram horas geradas no ventre da noite,
e, amadureceram na encruzilhada sem nome.

espia pela fresta o frio da extinção.
toca nos dedos hirtos
inflamados,
espinhosos.

um rosto denso de raízes,
com faróis presos ao silêncio,
esmaecesse no espelho da idade.
há desejos húmidos
refletidos em sonhos seculares

soam vozes semeadas nos espaços imaturos.
amadurecem os brilhos
de um verão resistente.
é amarga a linha da verdade
e confusa a palavra ramificada.

melodias esborram no sangue que jorra
com sabor a morte certa…

o rosto desvanecesse nas cortinas renegadas!

 Helena Maltez 

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14.2.13


Do sonho

O dia acordou.
Levantou-se na ponta dos pés
e viu o mundo
ainda deitado com os sonhos
e encantações da noite.

Subiu aos montes,
deslizou pelas colinas
e escorreu para a cidade
apressado.

Apagou os candeeiros das ruas
esganou
sombras escondidas nos pátios e nas esquinas,
e depois de repartir pelos humanos
angústias e problemas
encarregou-os de o levar até ao fim.

Depois deu pela minha ausência
(estava ainda no meio do sonho
a negociar uma felicidade),
abriu a minha janela fechada
e com todo o seu peso caiu sobre mim
interrompendo as negociações.

Kiki Dimoulá

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13.2.13


O Pássaro da Alma 

No fundo, bem lá no fundo do corpo, mora a alma. Dentro da alma, lá bem no centro,  pousado numa pata está um pássaro. E o mais importante — é escutar logo o pássaro. Por isso vale a pena talvez tarde pela noite, quando o silêncio nos rodeia, escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós, 
no fundo, lá bem no fundo do corpo.

 Michal Snunit

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11.2.13


O silêncio

Pego num pedaço de silêncio. Parto-o ao meio, e vejo saírem de dentro dele as palavras que ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco com o álcool da memória, para que se transformem num licor de remorso; outras, guardo-as na cabeça para as dizer, um dia, a quem me perguntar o que significam. Mas o silêncio de onde as palavras saíram volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro. 

  Nuno Júdice 

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10.2.13


Família feliz

Telefonou-lhe a dizer
que se ia casar.
Meses depois, que estava grávida,
seria um rapaz.
A seguir, durante cinco anos,
no fim da primavera, o mesmo
telefonema. Ora um rapaz,
ora uma menina, novamente uma
menina. Seis filhos, ao todo.
Quando por fim atravessou o atlântico
e a procurou, descobriu
que na morada que ela lhe dera
vivia outra gente.
Acabou por a encontrar, sozinha,
paraplégica da queda
de seis andares,
oito anos antes,
dois dias depois de ter ido embora.

 la mariée

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9.2.13


Fecha-me os olhos

Fecha-me os olhos devagar, 
com um beijo leve, com três palavras apenas: 
dorme, parte, adeus. 

 Assim tenho de me despedir.
 Deixo uma buganvília à entrada da porta branca,
 um bairro de sombras floridas, 
um cão a quem dei o meu nome. 

 Deixo a casa amarela, 
o limoeiro, as hortênsias, duas estrelícias na 
jarra vermelha, 
translúcida, sobre a mesa de mogno. 

 Deixo alguns livros,
 algumas paisagens de litorais desvanecidos, 
alguns naufrágios que desenhei com o lápis das 
tempestades. 

 Por favor, 
não digam que fui feliz, se não me viram
caminhar pelas ruas desertas, 
esmagando a serpente dos dias,
 construindo muralhas, 
que pouco depois se desmoronavam.

 Eles também se despediram, os amigos. 

 Quando me lembro deles,
 há um cântico negro,
com labaredas altivas, um eco de metal que vibra. 

 Não está certo que assim seja, que se soltem do
 nosso peito, um após outro, 
os delicados fios de ouro da ternura. 

 Deixo-vos as maçãs verdes sobre a mesa. 
Com o tempo, tudo há-de amadurecer.

  José Agostinho Baptista 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.2.13


 
Habituou-se a chorar mais tarde
no seu quarto em casa das tias
quando ninguém está o ouvir
depois de tudo lhe ter doído
as unhas
os cabelos
e o coração

 Adília Lopes 

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.2.13


Que fazer com esse grito? 

 Sente que deve ser um grito. Rouco, fundo, carregando consigo todo o silêncio guardado. Mas da garganta seca nem um som se faz ouvir e o esgar do rosto quase parece um sorriso. Uma mordaça invisível impede palavras, gestos e, mais que tudo, aquele grito que lhe sobe à boca quando tudo à sua volta louva a vida.

 Aterroriza-a o passar dos dias porque o grito perde urgência, aninha-se como memória longínqua. De repente, numa qualquer manhã, sente no corpo suado a dor que do fundo da garganta lhe invade o sangue e a aperta sem dó. 

 Um dia tudo desaparecerá e o grito ficará bem no fundo, enterrado em camadas de lembranças velhas que só se tornam conscientes quando a angústia o impõe. Até lá, aperfeiçoa as máscaras que escondem a mordaça e que escolhe cuidadosamente em cada dia.

  Alice Daniel

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6.2.13


Algumas tardes

Uma tristeza insólita
me invade algumas tardes.
Esta de hoje é uma delas.

No sombrio quarto de estar
triste,
permaneço à espera
que a lua certifique a defunção do dia.

Este é por fim o quarto
minguante de uma lua cheia
de macilenta luz
que me confirma o que eu esperava:
o dia
que tanto me doía está morto.
E a noite é o sonho: enfim, o nada.

Ángel González

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.2.13


Longe 

Longe
Hei-de acabar por me sentir longe
Longe de tudo

Hei-de pertencer cada vez mais
Ao horizonte

Hei-de ficar ao longe

Barco
Conscientemente afastado
De si próprio

Alberto de Lacerda

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3.2.13


Que lhe havemos de fazer

E agora, de alma vazia como tantas
vezes,
contemplo o passar lento dos dias
que me empurram não sei para que destino
escuro, pressentido
já sem curiosidade. É aborrecido
saber e não saber, enganar-se
e acertar. Também estar seguro
é tão insuportável em muitos casos
como duvidar, como ceder, como desmoronar-se.

Seguro, a salvo, agora
que a dor já passou,
observo a borrasca tal como a esteira
fundida nas minhas costas
com o espesso limo
dos sucessos quotidianos, dados
ao esquecimento, antes de serem recordações.
A indiferença ante a própria sorte
não é melhor companheira que a angústia,
nem meu sorriso
(quando o acaso nos põe,
velho amor,
frente a frente)
representa outra coisa do que a ausência
de um gesto mais justo
para significar a seca, dolorosa,
irreparável perda do pranto.

Ángel González

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

2.2.13


Nantucket 

Flores na janela 
roxo-claro e amarelas

alteradas por cortinas brancas
— Cheiro a limpo

— Sol do entardecer 
Na bandeja de vidro

Um jarro de vidro, o copo
voltado para baixo, e junto ao copo

uma chave — E o branco leito imaculado

 William Carlos Williams
(trad. José Agostinho Baptista)

 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.2.13


Desenho

Quem és tu?
Que me desenhas no espelho um corpo nu...

e a roupa de existir dorme em outro armário
o sono justo dos cansados de mim.

Afinal, quem és tu? Que desbotas no espelho...

Leila Krüger

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨