"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"
Um conto vazio
Pensava a mil por hora e por isso andava sempre cansada...
Achava ter a vida uma beleza exaustiva e alinhar os pensamentos dava-lhe muito trabalho.
Costumava costurá-los como uma colcha de retalhos, mas não suportava cobrir-se com ela.
Foi quando, em um dia estranhamente verde, um gato entrou por sua janela, e, ao puxar um fio, desfez toda a colcha que estava sobre a cômoda, emaranhou-se em linhas e desapareceu no horizonte.
E ela então, obtendo alguns instantes de pausa ao perder os pensamentos, encontrou-se em sua essência e sorriu sinceramente.
Anna Carolina Paegle
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Trago nas mãos a lâmina dos anos
que passaram por mim tragando sonhos:
sementes de um passado sem memória,
inúteis fragmentos de silêncio.
As velhas alegrias disfarçadas
tatuam sombras em meu rosto pálido.
Sorrio amargo, o limo transparente
refletido nos dentes amarelos.
Meus olhos baços já não sonham luzes
sob o cantar monótono do vento:
palavras surdas nos meus lábios cegos.
Antúrios se renovam no meu peito
e de meus braços pendem sensitivas.
Nos pés carrego o peso desses sonhos.
Zemaria Pinto
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Penélope
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
Myriam Fraga
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escuta...
rasgaram-me as entranhas à procura de vida. o que encontraram foi um deserto árido e vazio.nada tenho para oferecer. nada tenho para dar. apenas eu. nada mais possuo. terá de bastar. escuta...terá de bastar. não me peças que continue a lutar. não me peças mais um combate. escuta... estou cansada. cansada que olhem para dentro de mim. cansada da navalha que me retalha. cansada . quero respirar. preciso. fundo. bem fundo. respirar como quem acaba de nascer. expulsar o fétido ar que mora dentro de mim. preciso. escuta... escuta o que te digo nos longos silencios, nos olhares perdidos, nos gestos contidos. escuta...
Mia
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Delante de la ventania, el rosedal
Testamento enterrado
a la sombra del rosedal:
Le dejo mi guitarra
al vendedor de la panadería.
La hierba bendita
a la vieja del balcón.
La caldera
que silba Villa Lobos
al Fray Gustavo
que cose almas
los miércoles por la mañana.
El libro de poesía
de Augusto dos Anjos,
al cobrador del Expreso 022.
Firmado:
La niña de los ojos tristes.
Chico Buarque me llamaba de Carolina,
Pero era sólo un disfraz.
Soy yo la niña
que vio el tiempo pasar en la ventana,
sin ver.
Bárbara Lia
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o sol entra pela janela e repousa na tua face
a casa, parece vazia
escuto o som do vento
estavas lá
vazio como a casa,
senti tua sombra
a, sombra que sobrevoava
entre labirintos da minha alma
bastam tuas mãos
cobertas de vida, para encher a casa
procuro veloz com o olhar
o brilho dos sentidos,
o encher os braços
de sonos adiados,
exaustos, atados à imensidão da noite
misteriosa linguagem
entre um pedaço de mim
e os risos forçados, sem tempo
perco-me entre a casa
e o destino
caminho, caminho sem máscara
recomeço onde a realidade parou,
sem tempo, longe da memória
sinto-te em casa de novo
cobre-te o sorriso no rosto
helena maltez
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Olhava para a fotografia daquela que amei com amor. Amor. Amor. Amor, gostava de dizer esta palavra até gastá-la ainda mais. Amor, gostava de dizer esta palavra até perder ainda mais o seu sentido. Amor. Amor. Amor, até ser uma palavra que não significa sequer uma ilusão, uma mentira. Amor, amor, amor, nem sequer uma mentira, nem sequer um sentimento vago e incompreensível. Amor amor amor, até ser nem sequer uma palavra banal, nem sequer a palavra mais vulgar, nem sequer uma palavra. Amoramoramor, até ao momento em que alguém diz amor e ninguém virará a cabeça para ouvir, alguém diz amor e ninguém ouve, alguém diz amor e não disse nada. Sozinho, diante da campa. O amor é a solidão.
José Luís Peixoto
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Dignidade
Fui falar-te como se fosse a uma casa de penhores
Empenhar o meu último casaco
Sem flores
Sem anéis
Sem colares
E os saltos tortos dos sapatos
Palavras não houve
Sorriso apenas meu
De pessoa serena sem passado e sem futuro
Entregaste-me a cautela dos dias inúteis
E eu assinei
Só eu sabia que vinha nua
Matilde Rosa Araújo
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Escribe una carta de amor solamente
que tenga la semilla de un gran suspiro
y después olvídala en la memoria
para que yo la pueda escuchar.
De noche, cuando duermes,
aunque tú no lo sabes, vengo a buscarte:
mi límite frío de sueño
se compagina con el tuyo,
vivimos sobre dos desiertos
que al atardecer se transforman en colinas
y desnudo mis senos en la noche
ansiosa de que tú lo mires.
Alda Merini
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Oferenda
Eu falo da profundidade da noite,
da escuridão abissal.
Se vieres a minha casa, amor,
traz-me luz.
E uma janela para que eu possa ver
a felicidade daquela rua repleta.
Forugh Farrojzad
(trad. Luís Parrado)
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Já conheci a alegria da manhã
quando o quarto está em silêncio:
os gladíolos abrem-se na jarra,
a água corre da fonte para o jardim
e ao longe, na vila, as pessoas formigam...
Para te falar do meu espinho
só me resta uma língua mais arcaica,
ouvida na lama de um outono de chuva.
Nunca cheguei a saber o que quiseste:
ainda hesitante na vida estendeste
à minha frente as tuas nuvens,
deixei de ver a terra e a ti
que só a custo te respiro.
M. S. Lourenço
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A herança
A minha mãe ensinou-me a bordar:
o dedal no dedo médio,
usar o fio em pequenas meadas,
ensinou-me a fazer o ponto de bainha dupla
e a dispor a loiça de porcelana:
primeiro as bandejas,
depois os pratos e os copos.
A minha avó ensinou-me a engomar:
o lenço de criança dobrava-se
num triângulo, como o de solteira,
só o de cavalheiro se dobrava
em forma de rectângulo.
- Então és filha de boas famílias.
- Não, sou a filha das criadas.
Cristina Morano
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O espelho
O
espelho: atra
vés
de seu líquido nada
me des
dobro.
Ser quem me
olha
e olhar seus
olhos
nada de
nada
duplo
mistério.
Não amo
o espelho: temo-o
Orides Fontela
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Ainda bem que partes:
já me sobram mais afagos
para o gato, mais espaço
nas gavetas e nas horas;
com os lenços que deixaste
posso pôr em cacos limpos
o restante coração.
José Miguel Silva
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Arca
Tenho,
na velha arca,
minha provisão
de estrelas.
Noites quietas
e nítidas manhãs.
Asas
sobre a tarde.
Um campo de lilases
na tela de Monet.
Cisnes sobre o lago
de Lugano.
E as pupilas
luminosas
de um cão.
O perfume
do tabaco
impregnando
a casa.
E, no silêncio,
o livro,
a palavra.
Ivanira Bohn Prado
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Labirinto
Portas que desaguam em novas portas
Corredores, corredores, sem fim, sem fim.
Forças tento encontrar em mim
Para renovar as esperanças mortas.
Toda vida não é assim sem saída?
Sem respostas finjo-me de forte
Porque há esperança tendo vida
E sigo, abrindo portas e fechando,
Lutando, tentando, errando
Por lugares que são sempre iguais.
Só meus próprios passos são audíveis
Em meio ao silêncio e à solidão terríveis
À procura da luz que não verei jamais!
Sílvio Persivo
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Quem me dera voltar
Quem me dera voltar
às cores perdidas
nas tardes sem tempo
no mar deslumbrado
com seivas inquietas
das ervas que brotam
nas vidas corridas
nos medos
na alma a sangrar
Quem me dera voltar
ao silêncio de cantar
Constança Lucas
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Varanda para o mar
Todas as casas deviam ter
uma varanda para o mar
Para que as manhãs acordassem
no velame inquieto da claridade
E as sombras fundeassem frescas
pelas paredes opacas do meio-dia
E os entardeceres rebentassem
em sotaventos de crepúsculo num quarto
Todas as casas deviam ter
uma varanda para o mar
Ou uma janela...
Ou um parapeito...
Um olhar...
Sandra Costa
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Conta-me...
Conta-me
Conta-me o que se calou ainda.
Conta-me a memória, os sorrisos,
a doçura.
Põe a música certa a tocar e conta-me.
Conta-me o sentido, o racionalizado.
Conta-me das histórias,
dos equilibrismos.
Faz-me um desenho, uma pintura.
Diz-me como estava o céu,
como brilhavam as estrelas,
como já se ia embora Vénus
e a aurora raiava o negro
de rosas e amarelos.
Diz-me como foi o dia,
aquece-me desse mesmo sol.
Conta-me das metamorfoses,
dos crescimentos,
dos pés já doridos,
dos sonhos acordados.
Conta-me.
Não esqueças nem um pormenor,
um pensamento, um fio.
Conta-me.
Preenche cada espaço,
soletra cada letra.
Não te enganes nos ondes,
nos quandos, nos porquês.
Conta-me.
Recorda, agora, memória.
Conta-me tudo o que já começo a esquecer
Hipatia
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Mas não sei o que fazer com a misericórdia
Uma tristeza exclusiva do verão,
das despedidas ou das noites de verão.
Durante o dia é impossível notá-la,
tal como no inverno, quando está ocupada
a combater o frio.
Os meus sonhos recentes anunciam mudanças
mas não sei o que fazer com a
misericórdia. A representação da dor
é aquilo que dói. Já se pode abrir a janela,
um pouco, todos os dias, e escutar
as buzinas, a tarde rebentando.
Prefiro não fazer nada, que é pior.
Mariano Peyrou
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Ainda estás aqui
Lança teu medo
aos ares
Em breve
acaba teu tempo
em breve
cresce o céu
sob a grama
despencam teus sonhos
nenhures
Ainda
cheira o cravo
canta o melro
ainda tens um amante
e palavras para doar
ainda estás aqui
Sê o que és
Dá o que tens
Rose Ausländer
(trad. Ricardo Domeneck)
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Para a appassionata
Vivo como se dormisse
A sonhar contigo
Para sempre.
O mundo é um rumor longínquo
De mar em ressaca
A quebrar-se nas amuradas
Do meu castelo sem pontes.
Helena Kolody
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
De perto
Por que eu nasci pra viver no silêncio,
evidenciando o que nunca foi dito.
Nasci pra viver com a força do pensamento,
do sopro que muda o caminho,
uma palavra que desnuda a alma,
um olhar que desvenda destinos
e contempla futuros.
Uma mulher de desejos maiúsculos
vivendo
nas redondezas
dos detalhes.
Priscila Rôde
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Ali visitei as horas mornas
e me detive
na sequência dos contornos
apenas livres
apenas leves
das ondas suaves azuis
espuma
Perdi o anel
que me atava à vida
sufoquei uma lágrima
engoli um grito
Ali ficou um pedaço de um naco de mim
Ângela Marques
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Ausência
Fala
Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem
Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão
Ainda que acordes os olhos dos deuses
Fala
Ouvir-te-ei
A coragem
Alguém de nós que já não está
Daniel Faria
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Velhas cartas de amor
Ah, queimá-las não pude... É que elas - quem diria?
guardam murchas assim tua morta paixão
- a febre de uma noite, as lágrimas de um dia -
como o eco já sem voz de uma ultima canção.
Tuas cartas! - num tempo a que eu retornaria –
fizeram palpitar de amor meu coração...
Depois, veio o silêncio, a distância, a agonia,
e o bálsamo do tempo - a cruel consolação!
Vivem nelas ainda um romance apagado,
a luz da mocidade, o fogo de um passado,
a gloria de uma vida aos vinte anos em flor...
Ontem, contava-as, sim - com um gesto indiferente...
Mas sobre elas caiu uma lágrima ardente ...
...
E não pude queimar tuas cartas de amor...
Hector Pedro Blomberg
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Soneto - Rosa Divina
Rosa divina que em gentil cultura
és, com a tua fragrante sutileza,
magistério purpúreo da beleza,
alva lição de excelsa formosura;
há em ti como que humana arquitetura,
exemplo de uma ingênua e vã nobreza,
em cujo ser fundiu a natureza
o berço alegre e a triste sepultura.
Altiva em tua pompa presumida,
soberba, a morte afrontas, não te inclinas,
mas logo, desmaiada e emurchecida,
teu ser desfaz-se todo em tristes ruínas!
E assim, com douta morte e fútil vida,
vivendo enganas e morrendo ensinas!
Soror Juana Inés de La Cruz
(trad. J.G. de Araujo Jorge)
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Separação
Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena, no papel, escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite; orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.
Al-Mu'tamid
(trad. Adalberto Alves)
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Seria o amor português
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis da tua ausência.
Se não és tu, que me importa?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?
Fernando Assis Pacheco
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
Não me deixes
Não me deixes
antes que o lado sul do vento
me venha buscar,
fica e deixa-me contar
uma história
sobre as estradas
onde se escolhe o caminho,
de mãos agarradas
ao cajado, livres,
de pés andarilhos
compassados do destino
que nasce de dentro
da força de cada jornada.
Não me deixes
enquanto fores amarra
deste cais
onde o meu barco
repousa, inquieto.
Não me deixes
que preciso dos teus beijos
e a minha boca
fala de dentro de ti
com o sabor das palavras
que te amam
Jorge Bicho
¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨