"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.7.12



Saudação da saudade

minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida

aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz

ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento

aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim

Alice Ruiz

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

30.7.12



Dia

Desde que foi embora, o mesmo ritual:
caixa sobre o colo, eu tiro o laço,
desfaço a fita, jogo a tampa
e não me animo com o presente.
desde que foi embora,
eu apenas desembrulho o meu dia.
sem etiqueta de troca,
não sei o que faço com ele.

Eduardo Baszczyn

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.7.12



As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:

Às primeiras pertencem, antes do mais,
as tuas roupas, as jóias e as fotografias
e o nome da mulher que te deu o nome
e também morreu jovem
Mas também um par de receitas, o arranjo
de um certo canto na sala,
uma camisa que me passaste a ferro
e que guardo cuidadosamente
debaixo da minha resma de camisas,
algumas peças de musica, e o cão
sarnento que por aí anda
com um sorriso estúpido, como se ainda aqui estivesses.

Às últimas pertencem a minha caneta,
um perfume conhecido
na pele de uma mulher que mal conheço
e as novas lâmpadas que pus no candeeiro do quarto
que iluminam o que leio acerca de ti
em todos os livros que leio.

As primeiras recordam-me que exististe,
as últimas que já não existes.

Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

Henrik Nordbrandt
(trad. Rui Guerra)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.7.12



Madrugada

A esta hora, mal vejo
tenho areia nos olhos
e nenhuma vontade de dormir

o pouco que ainda enxergo
oculta-se na penumbra
- nenhuma vontade de acordar

Lara Amaral

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.7.12



Ausência

A cor da ausência é moldura sem luz.
A dor da ausência é um corpo sem rosto.
Crepúsculo de um sortilégio posto.
Explícita tela do amor na cruz.

Oculto na escuridão se põe o ausente.
Feição do luto vestindo o insulamento.
Réstia da vida esvoaçando ao vento.
Porções de amor acariciando a mente.

Gilson Froelich

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

26.7.12



A boca calada

A respiração cavando silêncios.
As mãos a pesarem
tanto que exilei os gestos
rentes ao coração.
Poiso a cabeça sobre a mão direita
e penso:
para o encontrar de novo
recomeçaria tudo outra vez,
andaria todos os caminhos,
arriscaria a minha vida.
Hora após hora,
ele regressa ao meu pensamento,
e vem do lugar de todas as ausências,
e tem nos braços a mesma curva
onde os pássaros iniciam
o primeiro voo.
Pedir-lhe-ia, agora,
que só uma vez me dissesse:
bebe a minha sede.

Graça Pires

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.7.12



Anoitecer

Por vezes não é mais do que uma sombra
No soalho à frente do teu passo
Por vezes dizes – vai-te
E arredas a cortina

Por vezes tem contornos de animal
Cansado e ferido
Não sabes se avançar ou recuar
Não sabes se gritar ou emudecer

Não te ensinou o berço o anoitecer

Licínia Quitério

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

24.7.12



Na casa à beira da estrada

Na casa à beira da estrada
Mora alguém que já morreu

As janelas abertas já não olham
A porta fechada já não fala
O telhado caído já não cala
Intimidades de amor.

Moram lá o sol e a lua
E estrelas, quando há.
A chuva e o vento
Também moram lá.

Na casa á beira da estrada
Mora alguém que já morreu.
Na casa à beira da estrada
Moro eu.

Jorge Freitas

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.7.12



Auto-retrato

Este que vês, de cores desprovido,
o meu retrato sem primores é
e dos falsos temores já despido
em sua luz oculta põe a fé.

Do oculto sentido dolorido,
este que vês, lúcido espelho é
e do passado o grito reduzido,
o estrago oculto pela mão da fé.

Oculto nele e nele convertido
do tempo ido escusa o cruel trato,
que o tempo em tudo apaga o sentido;

E do meu sonho transformado em acto,
do engano do mundo já despido,
este que vês, é o meu retrato.

Ana Hatherly

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.7.12



Carta

Acabou! E agora penso no que farei
com tuas coisas, das cartas de amor
que lia sentado sozinho ao pé da cama.
Do perfume que ficou pelo resto da casa,
no jardim que você passeava e teus cabelos
enfeitavas com as rosas que plantei. Você
deixou muitas marcas, mudou meu mundo
quando mais precisei, só não deixou explicado
o que fazer com essa dor que ficou em mim.

Arruda Bonfáh

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

21.7.12



Auto-retrato

falo pouco
entre uma palavra e outra
um rio pára e descansa
suas águas contínuas

meu coração habita
a terceira margem
onde cavalos e pássaros
fabricam os sonhos
que sonharei

debaixo das unhas
estão guardados
os dias que virão
novelo de vida
uma ponta amarrada no pulso
a outra ponta perdida

Roseana Murray

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

20.7.12



Sem palavras

e quando olharam para mim
dizendo que eu estava com saudades
saudades de momentos passados
esperando que eu nada negasse
eu ria
apenas ria uma desatenção desbotada
pelo avesso da lembrança doída

eu ria
apenas ria uma vergonha cândida
destas que buscam conceitos abstratos
para os caminhos virgens da vida
e vai deixando enigmas
pincelados nas cercas
como sói que seja
nesses casos de saudades
de saudades
de uma verdade inventada
de dentro da qual partimos
sem nada deixar
sem nada levar

Oswaldo Antônio Begiato

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

19.7.12



Ela lhe parecia tão bela, tão sedutora, tão diferente da gente comum, que não compreendia que ninguém se transtornasse como ele com as castanholas dos seus saltos nas pedras do calçamento, ou tivesse o coração descompassado com os ares e suspiros de suas mangas, ou não ficasse louco de amor o mundo inteiro com os ventos de sua trança, o vôo de suas mãos, o ouro do seu riso. Não perdera um gesto seu, nem um indício do seu caráter, mas não se atrevia a se aproximar dela pelo medo de desfazer o encanto.

Gabriel García Márquez

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.7.12



Revérboro negro

Às vezes assusta-me este novo riso que tenho. Não que antes não risse, mas exactamente porque antes ria e este riso não ri. Apenas revérbero negro do que seria um sorriso se alguma alegria o tomasse. Só que não há alegria e o riso perpetua-se negro sob o céu pesado do olhar de outros que se perguntam e com razão: estará a ficar louco? Por mim nunca me coloquei a questão (é o olhar deles que me assusta). Nos dias a questão foi sempre outra: como sobreviver a esta dor sem pausa? Como atravessar este grito sem fim? É para ela que o riso é solução.

Jorge Roque

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.7.12



Até ao esquecimento

Cansados de inventar palavras
de dar nome ao silêncio
para afugentar tristezas
Cansados de olhar para o céu
rogando que chova
Que a água ou o vento
tragam um gesto que nos devolva a vida
Cansados de pedir aos mortos
que encham as nossas horas
que inundem com as suas vozes o nosso leito obscuro
Cansados por fim de acreditar
em labirintos
Optamos por deixar de interrogar as esquinas
por ignorar promessas
Optamos por fim por essa eternidade
que é o esquecimento.

Martha Carolina Dávila

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.7.12



De noite não escrevo cartas,
qualquer que seja a luz, para onde quer que seja.
E já não me assusta o elevador
vertiginoso, desde que o sono
me habituou à queda.

Na luz do fim da tarde agora brilha
para sempre a minha varanda amarela.
Campos salgados, colinas esburacadas,
já não me assustais.

Como se fosse a minha vida,
fecho as janelas, vou comendo
pão, poupo energia.

Hans-Ulrich Treichel

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.7.12



Existe no silêncio
um grito de harpas
desamparadas
como se viúvas
da música das palavras.

Porém não chores
a eternidade aprende-se
escutando o vento.

Luiza Caetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.7.12



Pausa

Parecia-me que este dia
sem ti
devia ser inquieto,
escuro. Em vez disso está repleto
de uma estranha doçura, que aumenta
com o passar das horas –
quase como a terra
após um aguaceiro,
que fica sozinha no silêncio a beber
a água caída
e pouco a pouco
nas veias mais profundas se sente
penetrada.

A alegria que ontem foi angústia,
tempestade –
regressa agora em rápidas
golfadas ao coração,
como um mar amansado:
à luz suave do sol reaparecido brilham,
inocentes dádivas,
as conchas que a onda
deixou sobre a praia.

Antonia Pozzi
(trad. Inês Dias)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.7.12

Carinho (d)escrito em palavras... (milionésima postagem)



agora, vai

agora, vai
e não tomes muito do tempo para descansar

tens que continuar,
tão somente e apenas
continuar,
e se souberes
guarda das sombras
o idioma do homem
esse pouco de palavra que apenas procura
o que não encontra
e quando o encontra,
não se satisfaz.

Deixa-o repetir em elipse, a rota
o perpétuo movimento
inquieto verbo em fragmento, nítido
pressentimento, por vezes a saliência do espelho,
a tarefa de vasculhar, chafurdar, reescrever
continuar
e se preciso for,
como destino e momento passado
já somatórios do corpo que pressente,
[da areia em que se esculpe o passo se diz que não sabe como o guardar]
nem à escrita dum mar que adormeceu quase morto
na palavra que não tem distância,
nem à própria guarida do tempo, vai

anda,
tens que continuar.

Leonardo B.

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

11.7.12



Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.

Luís Quintais

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

10.7.12



Abriu no colchão as valas possíveis
e enterrou por ordem alfabética
cada parte do corpo: os pêlos
os pântanos as unhas encravadas
e as unhas que outros cravaram pelas coxas.
Estudou cuidadosamente as ondas as horas
para que não restassem dúvidas
sobre os caminhos marítimos
para a noite. Por fim
podou todas as janelas do quarto;
bebeu o vinho;
roeu a carne do quarto
até não sobrar nenhum coração.

Catarina Nunes de Almeida

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

9.7.12



Suspensos na saudade
(moldada a medo)

deslizam pelo silêncio espelhos
em tons monocromáticos

criam sonhos desconexos
em pontas dos pés

onde a morte das abelhas envelhece as sombras
e peixes vermelhos brilham na violência do vento

delírios electrificados onde a luz canta baixinho
e as imagens dançam em desordem

é difícil acordar no interior da noite
(pintada em tons de sonho)
quando a luz amadurece nos corpos adormecidos

mergulhando num abismo de abelhas e peixes
sonhos cambaleando pela dor da respiração
numa ressaca onde acordo e apago memorias

ouvindo ainda restos da tua voz
perfumando o silencio.

Maria Sousa

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.7.12



Próxima de ti...

Onde estás, alimento dos meus sonhos?
Estou perdida sem saber onde te procurar...
Persisto no sonho, nesta busca eterna
Estarei perdida no caminho?

Continuo a imaginar-te nos meus sonhos
Nas asas alvas do amanhecer, sei-te próximo...
No orvalho da esperança, as rosas contam-me de ti
Irei algum dia descobrir-te nas nuvens?

Estarei na rota certa, no sonho de luz?
Se pudesse aproximar-me de ti...
E dizer-te saber, que as nuvens são azuis

Se conseguisse ver-te de novo…
Os sonhos tornar-se-iam estrelas
Serias o refúgio no céu, para onde voaríamos.

Cecília Vilas Boas

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.7.12



Mosaico

Juntei meu rosto, transformado em cacos - pedaços caídos sobre o chão do quarto. juntei o meu rosto, com pá e vassoura, depois do espelho quebrado. da imagem dividida ao meio pelo trincar inesperado. recolhi os pedaços de mim, depois de não encontrar mais o reflexo. de não me enxergar no meio da moldura dourada - sobrevivente pregada na parede do quarto. juntei meu rosto, colei os pedaços, sem me reconhecer no estranho mosaico que acabou sendo criado.

Eduardo Baszczyn

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.7.12



Perante a morte estamos sempre sozinhos.
Umas vezes de pé, desassombrados.
Outras deitados em concha, no soalho.
Umas vezes dela falamos, outras não.
Nessas fingimos ter a fala neutra e esquiva,
Como se a tristeza não enchesse o horizonte.

Sozinhos perante ela certo é que estamos.
Dobramos o riso na curva dos caminhos,
Juntamos mãos a outros gestos já traçados,
Calcamos passos sobre a terra
E beijamos, nos nossos filhos,
A memória que, nossa, não teremos.

Traço as letras. Ao traçar as letras,
Sei de que falo.
Entretanto, nunca o saberei.

****
Talvez tenha sido esse o dia (foi seguramente) em que falaste de asas, como se a noite as fizesse crescerpor delas falarmos: e houvesse, ao nosso lado, o intermitente rufar das suas penas.

****
Só ontem disseste caminhamos sozinhos,
e por isso só ontem te entendi:
o silêncio do mundo está cheio de vozes.

Helena Carvalhão Buescu

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

5.7.12



Depois

Depois da confidência
me retirei da tarde.
O céu ficou vazio

vazio

onde era vôo de pássaros
(os pássaros estavam quietos).
Uma febre roía meus ouvidos:
voltei mais velha (exilada)
com um toque de infância entre meus dedos,
reserva de sal dentro dos olhos.

Olga Savary

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.7.12



Não adormeças

Não adormeças: o vento ainda no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas mais húmidas e chãs
com que em casa se cozinhavam perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu rosto
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.

Maria do Rosário Pedreira

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨