"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

29.2.12



Busca

Mansamente
abro as portas da existência
na incansável busca de mim mesmo...

Nada encontro,
só fantasmas do passado
em corredores vazios...

Inconscientemente
busco a ti...
minha melhor metade!

João Gaspar Leivas

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.2.12



Depois de tudo

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

Cassiano Ricardo

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

26.2.12



Borbulhante

Guardei meu poema dentro de uma bolha de sabão.
Como não ficar seduzida
pela circunstância lisa e transparente,
onde o arco-íris passeia docemente
e morre de amores pela espuma colorida?

Acomodado na nova moradia,
o poema suspirou e adormeceu.
Quando acordou, já não mais me pertencia.

A bolha de sabão se deslocara
e o poema apaixonado que eu criara
descobriu de repente que era teu.

Flora Figueiredo

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.2.12



Saudade

Saudade dentro do peito
É qual fogo de monturo
Por fora tudo perfeito,
Por dentro fazendo furo.

Há dor que mata a pessoa
Sem dó e sem piedade,
Porém não há dor que doa
Como a dor de uma saudade.

Saudade é um aperreio
Pra quem na vida gozou,
É um grande saco cheio
Daquilo que já passou.

Saudade é canto magoado
No coração de quem sente
É como a voz do passado
Ecoando no presente.

A saudade é jardineira
Que planta em peito qualquer
Quando ela planta cegueira
No coração da mulher,
Fica tal qual a frieira
Quanto mais coça mais quer.

Patativa do Assaré

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

24.2.12



O guarda- chuva

Nas manhãs de Inverno
o homem transpunha a porta
e, sob a asa negra do guarda-chuva,
transportava a solidão.

No comboio,
ela entrava de roldão
e em cada rosto se estampava;
no trabalho,
por onde passeasse a sua vida morta,
a solidão medrava.

À noite, apenas regressado,
fechava a asa,
e deixava de novo a solidão
à solta,
pela casa.

Manuel Filipe

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.2.12



A neve cai

A neve cai.
Há uma mulher nua no meu quarto.
Os olhos pousados na carpete cor de vinho.

Tem dezoito anos.
E os seus cabelos são lisos.
Não fala o idioma de Montreal.

Não quer se sentar.
Não parece ter a pele arrepiada.
Ficamos os dois a ouvir a tempestade.

Acende depois um cigarro
no aquecedor a gás.
E deixa cair os seus cabelos longos para trás.

Leonard Cohen
(trad. de Jorge Souza Braga e Carlos Tê)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

22.2.12



As pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

Raimundo Correia

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

21.2.12



Brechó

Como me sentia
muito entediada, vazia e só
fui comprar um coração usado
num brechó.
Encontrei de vários tipos:
lantejoulas, renda, pelúcia,
corações de vó (ao lado do pinguim de geladeira)
cristal, vidro e madeira
corações de freira
e um em especial
que já havia sido apertado por espartilhos.
E foi bem esse que me disse:
"Vá em frente, moça. Tudo que você precisa é de um pouco de fé"

Greta Benitez

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.2.12



Espelho

quem me olha no espelho
tem na sombra velada do sorriso
o disfarce inábil de marcas antigas
o olhar em que o brilho se esconde
renega a identidade equívoca do rosto
a imagem muda nas margens do tempo
outros espelhos mentem de outra forma
com a convicção dos amantes infiéis

Alice Daniel

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

15.2.12



Encontro-me comigo todos e cada dia
Nunca me deixo só a mim mesma
Não fico nem um segundo longe da minha vista
Por isso não consigo simplesmente entender
O que pode ter acontecido
A este rosto
Que me responde olhando-me fixamente
De velhas fotografias

Olga Ivanova

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

11.2.12



Medo

Na solidão
não há perigo,
eu sei,

mas como me isolar
de meus demônios?

Salete Aguiar

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

5.2.12



Dizia que viajar é poder partir-se
para o lugar em frente,
que cada lugar só impressiona porque sugere
a visibilidade do próximo.
E que no fim, quando abandonamos tudo
e já não ouvimos senão o repique dos sinos,
as paisagens deixam de existir para não
passar do que a respiração liberta.
O que nos conduz é podermos sepultar o
corpo noutro lugar;
porque em todos os sítios passados deixámos o corpo
à vista do lugar mais próximo.
Percebi, sem que mostrasse algum temor,
que havia descoberto a transparência do mundo,
que fora auxiliado pela face
suspensa dos viajantes.
E lembrei-me como o tempo havia de ensinar,
desde a juventude à velhice,
que onde a beleza assola habituamo-nos a uma pausa nos
olhos, nas mãos e nos olhos que são o que nos diz do
pouco do que nos fica sempre.

Rui Coias

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.2.12



Esquecimento

Então a memória nos trai

E a antiga vida principia a desaparecer.
Algumas palavras.
Alguns sons.
Alguns cheiros.

E tudo o que parecia indivisível
desvanesce por inteiro.

Então a lembrança nos distrai.

E as vozes não nos chamam mais.
E o futuro se reveste de paz.

E então
o passado não mais nos atrai.

E nem mesmo o presente.
(sente!)

E tudo é só bruma e névoa e esquecimento.
Pezinhos de crianças em calçada de cimento.

Moacir Caetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨