"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.1.12



Tempo

O tempo
o pássaro
iluminado
corre
veloz
na minha sombra
e eu
embriago-me
d'enganos
aleitando
a dor
nula
enraiveço
nula
a dor
aleitando
d'enganos
embriago-me
e eu
na minha sombra
veloz
corre
iluminado
o pássaro

Patrícia Lopes

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30.1.12



Um cigarro

Um cigarro
ninguém tem
um cigarro?
um copo de vinho
um amor perdido
uma causa iludida
uma angústia a mais?
alguém quer trocar
de veias
de sangue
de coração
de pulmões?
um cigarro
ao menos
ninguém tem
um cigarro?

Carlos Alberto Machado

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29.1.12



Como é que...

Como é que eu,
ouvindo tão mal, distingo
o teu andar desde o princípio do corredor?

Como é que eu,
vendo tão pouco, sei
que és tu chegas, conforme a luz?

Como é que eu,
de mãos tão ásperas, desenho
a tua cara mesmo tão longe dela?

Onde está
tudo o que sei de ti
sem nunca ter aprendido nada?

Serei ainda capaz
de descobrir a palavra
que larga o teu rasto na janela?

(Que seria de nós
se nos roubassem os pontos de interrogação?)

Mário Castrim

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28.1.12



Um gato com asas

Um gato com asas
muito parecido ao silêncio
entra à tardinha, pergunta:
posso ficar um pouco por aqui
haverá um peixe
ou alguma alma que se coma
posso trazer a minha noite
comigo?
Em troca poderão escutar
como ronrono
como enrolo as garras no sono
e as minhas asas se retraem
sob a pele.

Lennart Sjögren
(trad. de Robin Fulton)

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27.1.12



Onde

Onde
tenho estado
onde estou
Para onde foi a minha vida
A vivida
A que está por viver
Se tivesse sido outra
Seria a mesma outra
Não tenho mais vida
Para além desta
Que me vive.

Glória Gervitz

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26.1.12



Caixa de costura

Venho costurando minha vida
com linhas de saudade.
Procuro equilibrar-lhes a cor
para que o resultado final não seja triste.
Por vezes, é o cinza que insiste;
por vezes, impera o marrom.
Ainda bem que tem saudade bonita;
mudo o tom, amarro fitas,
busco a outra ponta do novelo;
intercalo a trama em amarelo.
A saudade é assim mesmo,
tecelã do tempo.
Quando menos se espera,
arremata o momento, leva embora,
deixa a porta encostada, o cadarço de fora,
e nunca avisa a hora de voltar.
Ainda hei de costurar com verde florescente
e, se a saudade chegar autoritariamente,
vai se sentir enfraquecida.
Enquanto procuro a cor,
vou costurando a vida,
sem saber qual vai ser o resultado.
Caso ele não fique combinado,
dou um nó, encosto agulha, guardo a linha,
que essa culpa roxa não é minha.
É uma artimanha branca do passado.

Flora Figueiredo

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24.1.12



Casa só

São com o estio
os primeiros sintomas de solidão:
cabides desenroupados, estantes saqueadas,
salas vazias de luz
onde houve vida
e já só há mistério, pureza
ilimitada
como a última claridade destes crepúsculos.

Serão longas as noites, sem amor
nem desejo, feitas pelo contrário
de uma longa carência
e povoadas
de uma aflição hostil, talvez o medo,
que deixa um rasto sujo de suores
no fio caiado da almofada. Será assim a vida,
apenas
o lento desânimo
que vive nos espelhos
desta casa tão só...

Tomás Sánchez Santiago

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22.1.12



Uma palavra sobre a tarde

Começas a dobrar os calções, a camisa.
As sandálias guardam,
como um cão, as sombras.
A água jorra da fonte e o clarão da manhã cai
sobre as cadeiras da varanda.
Os frutos, na relva húmida, são as dispersas maçãs
dos teus gestos.
Os barcos ainda não partiram.
Nem o oiro dos teus cabelos se agita
com a brisa triste de setembro.
Há ainda uma guitarra e uma festa
quando cantas.
O sol, essa lâmina agora cega,
rasga-te as vestes,
o linho e a seda da loucura.
Partir é um regresso
à noite outonal,
ao cair lento das folhas,
ao olhar que se dobra
com o alto trigo da tarde
até ao imenso crepúsculo
das últimas palavras.

Eduardo Bettencourt Pinto

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21.1.12



A caixa das cartas antigas

Ainda está por decidir a caixa
onde somamos
cartas de quem nos queria antes
do acordar aqui. Mas
como ordenar essas linhas
(mesmo que para as ler de vez)
sem ter que rever cada voz?
Resistindo à distracção de
ter que aceder à memória?
Sendo fiel ao momento sem
ser desleal com o passado?
Usando apenas as mãos
sem usar dos sentimentos?
Revisitando os lugares
sem saudar as personagens?
Há chaves que deves fazer por
perder nas despedidas se
no agudo vão de escadas que sobe ao teu coração
a caixa é uma teia
(ardilosamente montada)
pronta a reter a pressa de
um voo mais desprevenido.

João Luís Barreto Guimarães

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20.1.12



Véus

Um véu, diáfano,
translúcido, que deixa ver
ao tempo que oculta.
É assim que você me seduz:
descobrindo-se atrás das máscaras,
escondendo-se sob um facho de luz.

Uma sombra, uma ilusão,
fugitiva, quando nela os olhos pousam,
confundida com a tela que a antepara.
É assim que seu beijo sabe:
tão intenso quanto fugaz,
tão ávido quanto frugal,
tão simples como a difícil paz,
tão doce... com um pouco de sal.

Uma nuvem, passageira,
ora escura, carregada,
ora invisível, sutil vapor.
É assim que me toca a alma,
explosão de impaciente calma,
o seu indescritível amor.

Waspzzz

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19.1.12



luto tenaz

é claro que penso em ti todos os dias. todos. penso com raiva, penso com uma revolta transtornada, e depois, depois penso com uma tristeza que me invade inteira, qualquer coisa que me derruba, que me mata, e que esquecendo-me te esquece. até ao dia seguinte, é claro.

Sarah Adamopoulos

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17.1.12



No templo da montanha

Noite no templo
do alto da montanha.
Posso levantar a mão,
acariciar as estrelas,
mas não ouso falar
em voz alta.
Receio assustar
os habitantes do céu.

Li Bai

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12.1.12



desAlinhados

dias há, em que o ponteiro cessa
com o gasto correr do tempo
e na escuridão do quarto assomem incertas certezas:
a eternidade é doce taça de cicuta

dias há, onde a noite entra pelo dia
arrastando as rosas com o temor
do vento de lâminas afiadas,
beijando os enfermos em leito de rios

dias há, onde não vejo a sombra
nascer dos meus pés
e o destino é mera travessia
sem provável regresso

LauraAlberto

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11.1.12



Pedra

Dura como a água dura.
Raiz de si própria.
Em êxtase perpétuo
a pedra perpetua
a pedra, imagem pura
e a ideia de pedra
se nos torna madura.

Josep Palau i Fabre
(versão livre de Yvette Centeno)

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9.1.12



Driving

Faz-me falta caminhar. Aqui tudo me parece igual.
Estou sem ar.
Percorro a mesma estrada. Para cá e para lá. Para lá e para cá.
Estou sem estar.
Quem me dera abrir a porta e fugir. Percorrer outros caminhos.
Abraçar as árvores. Sentir o sol, o frio e a chuva.
Encontrar-te no vento. Adormecer.

Ana Luisa Sales Henriques de Avelar Teixeira

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8.1.12



Cantiga de viúvo

A noite caiu na minh’alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada…acabou.

Carlos Drummond de Andrade

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6.1.12



Elegia do tempo

Tanta emoção assassinada
no calendário aonde
o meu tempo fatalmente
se encolhe,

Tantas enrugadas raízes
deslizando em minhas mãos!

Devolve-me o rosto daquela Primavera
de jasmins em floração!

As cartas, os encontros
e os cabelos felizes
que a minha ternura penteava!

o fulgor do trigo
onde me contavas segredos.

Tanta emoção assassinada
entre túneis e mêdos
onde os pássaros
ainda se aventuram a voar.

Luiza Caetano

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5.1.12



planisfério

ao me olhar no espelho
plano
há uma imagem – minha –
que flutua
que não se pensa:
plana
leve como pluma
há uma dimensão – minha –
não refletida
que me absorve e me
adivinha
plena

Adriana Coelho

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3.1.12



Invisibilidades

Mastiguei um pedaço de luz e
desenhei, por inteiro, o vazio e
a nudez de um rio,
como se a memória adormecesse sem pesadelos,
nem muros-caiados-de-silêncios…
Só as sombras eram brancas, frias,
(des)luadas na noite que me dormia…
Despenteadas…
Bailarinas invisíveis,
que me consomem vampiras,
o sentir e o ver...

Almaro

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2.1.12



Escuro

Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.
Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.

Rui Pires Cabral

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1.1.12



Eu antes sabia cantar. Fiava. Sabia. Cantar. Canções. Nos fios. Que fiava. Sabia. Cantar. Eu antes era. O que sabia. Hoje sou. O que já me esqueci. Tecidos os fios. Que fiei. Cantadas as canções. Que sabia. Eu antes desconhecia. Que há música bastante nos mapas que as rugas traçam. No entrelaçado das fibras. Eu antes sabia. Cantar. E fiar. Hoje sei que a música se calará. Que não se fia a vida. Só se tece. E entrelaça.

Elisa

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