"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.1.11


Não sei como chegar à tua casa perdida,
a tua casa emaranhada nas antenas
como um trapo miserável, esquecido.

Não sei como entrar no teu bairro na tua vida,
a tua vida de puzzles e de palmeiras,
o teu bairro de lata e de armaduras.

Não sei como ir da minha vida à tua rua,
a tua rua cheia de perguntas,
a minha vida estranha sem respostas.
Mas chegarei. Porque tu me chamas.

Belén Sánchez
(trad. de Ana Teixeira)

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30.1.11


Se a noite caísse agora desenhando a sua luz

Se a noite caísse agora desenhando a sua luz
escassa / dissimulando a tristeza
das mãos / um fósforo
dançasse como um relâmpago
indiscritível no olhar / perdido
na dor do silêncio / os
pés alargassem o horizonte até à pureza
inconcebível do sofrimento / se
a boca fosse um íman
ou um archote punindo o vinco das convicções
na pele coberta de sal
as aves debicassem as infinitas
trevas do teu nome / do nome espesso
da escuridão
uma árvore, apenas uma árvore, bastaria
para te salvar.

Jorge Velhote

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29.1.11


Vendado

Rápidas mãos frias
retiram uma a uma
as vendas da sombra
Abro os olhos
Ainda estou vivo
No centro
de uma ferida ainda fresca.

Octavio Paz

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28.1.11


Cofre de silêncios

Guardo um cofre,
Nem de ouro , nem de cobre.
Um cofre.

Um relicário de silêncios que freqüento,
Que não digo, me permito a liberdade,
Um alento, calo o que no acaso sinto.
E medito, sopro e vibro, cordas que tangem,
Descortino...de verdade in-possível,
Como a saúde possível no limitado
Tempo e espaço que tenho, sou e faço
A sete chaves.
De silêncios, desatinos,
Destinação a caminho,
Tudo e todos cabem, sentem,
No possível.
Nada é fácil...
Compreensível,
Sempre...

GaiÔ

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27.1.11


Partilha de cores

As sardas imperfeitas que me pintam o rosto sem esquadria certa vão salpicar-te as formas quando me afundar em ti, neste crescente desejo de te beijar por inteiro, em jeito de flor campestre com o pólen ao vento onde só poisa quem nela vê mais do que uma cor.

cferreirapedro

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26.1.11


De cinta era fina, e no andar, um tudo-nada flexuoso, punha um dengue tão involuntário que se quedava em requebro natural, promissor de temperamento. Pertencia em suma à classe de mulheres que, a começar pelo corpo e a acabar pela alma, se tornam amantes perfeitas. Lianças com elas jamais se rompem. Quem as ama, ama-as até à morte. Quando desaparecem, deixam inextinguível braseiro. É que deram com a sua carne a beber o filtro que não perdoa, onde se concentraram meiguice e enliçamento animal, princípios sumos da voluptuosidade criadora.

Aquilino Ribeiro

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25.1.11


A Identificação das Açucenas

Teorizar a paixão no verso final
Segundo uma tradução escrita em sangue, espiral.
Abraço a água

E solto os meus lírios roxos purificados em lama
Imitação da vida breve,
As formas estranhas dum livro pousado na cama.
Abraço a água

E engulo os vinhos que se tragam na concluída nuvem
Ensino aos sonhos a calma, os teus ensinamentos e nascente
Fico inquieto nesta alma.
Abraço a água

Eternizados pela mais breve desordem poesia, e perdidos
No único crepúsculo que se observa deste dia
Salto num repente, superfície da exagerada nudez fugidia
Abraço a água
Enquanto fujo de mim.

Ricardo S.

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24.1.11


Mochila invisível

Transportava sua tristeza nos ombros, como se fosse uma mochila invisível. (...) Voltei-me cada vez mais para minhas fantasias e meus escritos, e foi assim que comecei a me descobrir. Ele se retirou em sua tristeza, barricou-se atrás dela, e eu retirei-me para meu quarto, a fim de escrever.

Erica Jong

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23.1.11


Despetalando...

Hoje estou flor
colhida antes da hora
Esquecida e com os pés
fora d’água
Sem sol
Sem ar
Sem viço
Despetalando

Valentina Diadory

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22.1.11


Varanda

A terra hoje é uma varanda
sobre um jardim de Matisse
um claro degrau de pedra nua
no interior de um poço
rodopiam as cores na água
cintilações, folhas, frutos, sargaços
raízes, e perto talvez os teus passos.

Maria João Fernandes

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21.1.11


mais longe

fora do tempo
é mais longe do que qualquer espelho
...
quando a noite me atormentava
de não chegares

quando a madrugada
me matava de partires

gil t. sousa

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20.1.11


Ela

Ela passava -cerimoniosamente- as páginas de um jornal
-um jornal em espanhol, comprado em Victoria Station.
Ele olhava pela janela para os últimos bairros,
a cidade apagando-se por detrás, a precária luz de outono.
Ela lia -minuciosamente- as páginas de necrologia,
ele olhava agora o campo: cavalos e ovelhas,
o vento nos ramos, paisagens de Constable.
Ela comentava histórias de imprensa, os casos do dia,
ele recordava uma criança atónita, em silêncio,
-havia séculos-numa casa de Eaton Square.
Noutro tempo, com outra mulher,
a passagem do Tamisa na margem cinzenta.
Passavam as páginas do jornal
e passavam corpos e camas,
uma mulher despida que se ria
com hálito de vodka e tabaco.
O comboio chegava ao seu destino e ela acabou a leitura.
Debaixo do assento daquele comboio
-entre Londres e Dover- ficaram abandonados
um amarrotado jornal em desordem
e cinquenta anos da vida de um homem.

Juan Luís Panero
(trad. de Joaquim Manuel Magalhães)

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19.1.11


Elegia do Amor

Tudo, em volta de nós,
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento,
Amor e piedade.
A folha que tombava
Era alma que subia…
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção
E o pó melancolia.

Teixeira de Pascoais

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18.1.11


Travessia

Amo-te — ela murmurou-lhe ao ouvido.
Ele acreditou.
E foram representar a palavra
para um banco de jardim,
o rio morrendo-lhes nos olhos,
quase no mar.
Ela deu-lhe a boca.
Ele acreditou na travessia,
no castelo do outro lado.
Inventou um barco.
Um remo para ele, outro para ela.
Mas não atravessaram o sonho.
Vogaram em círculo, sempre o mesmo círculo.

Ela não remou.

Vitorino Ventura

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17.1.11


Por vezes, consigo suportar o teu silêncio

Volto a pensar em ti.
E por um momento, por motivo nenhum, tenho esperança.
Acredito: estaremos juntos. Um dia, qualquer dia.

[…]

… há sonhos, há amores, que não devem ser concretizados, que não podem ser concretizados; basta que exista a mera possibilidade de os concretizar. Basta que exista uma escolha.

Percebes?
Por vezes, também penso que é suficiente amar-te, que a concretização (ou até a correspondência) desse amor apenas corromperia a perfeição do sentimento que me une a ti. Por vezes, penso: amar é uma forma de ser amado.
E consigo suportar o teu silêncio. Por vezes.

A esperança é o mais inconsequente e fútil dos sentimentos;
ou o mais abnegado e sublime?
Diz-me tu.

Paulo Kellerman

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16.1.11


No fim

Vistam-me um vestido colorido
escolham anéis e relógio.
Leiam poemas em voz alta
ao som de um saxofone.
Não façam anúncios,
nem usem lenços,
não vistam preto
nem tão pouco entristeçam o olhar.
Espalhem-me as cinzas,
num local qualquer,
onde possam plantar uma flor.
Reguem-na com água.

Nunca com lágrimas!

Eugénia Ribeiro

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15.1.11


A cidade e o rio

Ela disse: Sou uma cidade esquecida.
Ele disse: Sou um rio.

Ficaram em silêncio à janela
cada um à sua janela
olhando a sua cidade, o seu rio.

Ela disse: Não sou exactamente uma cidade.
Uma cidade é diferente de uma cidade esquecida.

Ele disse: Sou um rio exacto.

Agora na varanda
cada um na sua varanda
pedindo: Um pouco de ar entre nós.

Ela disse: Escrevo palavras nos muros que pensam em ti.
Ele disse: Eu corro.

De telefone preso entre o rosto e o ombro
para que ao menos se libertassem as mãos
cada um com as suas mãos libertas.

Ela temeu o adeus, disse: Sou uma cidade esquecida.
Ele riu.

Filipa Leal

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14.1.11


Vesperal

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
- na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
- na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina ingénua de Velázquez,
a flutuar num mar de seda e renda!

Deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda!

António Maria de Sousa Sardinha

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13.1.11


Sonhar de sonhar

Gostaria de sair caminhando
por aí,
entre notas musicais,
sozinha, olhos, fechados, sonhando...
em sonhar cada vez mais!...
Gostaria de, no meio da escala,
encontrar-te assim, de repente,
e que as notas
te dissessem tudo o que sente
essa caixa de rimas sem jeito,
da forma precisa de um coração,
que me bate louca dentro do peito!
E que, depois de tudo te falar,
cantasse, numa linda canção,
todo esse acorde de amores
que guardei para te dar!...

Mariza Fontes de Almeida

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12.1.11


O dia inteiro a chuva não me deixa.
Vai embora, eu lhe digo asperamente.
Ela dá dois passos para trás, depois, devota,
em silêncio me segue como uma menina.

Bella Akhátovna Akhmadúlina
(trad. de Lauro Machado Coelho)

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11.1.11


Sol de Janeiro

Nunca tanto como hoje reparei com atenção
na luz do sol de Janeiro. Forte
mas delicada. Furtiva mas
demorada. Não arde nem faz tremer.
Não é densa nem clara. A luz
do sol em Janeiro.

Assim é o nosso amor
oculto pela tinta dos dias apenas
espreita uma aberta
(uma distracção das nuvens)
para luzir e irromper
(nunca antes como hoje precisei
tanto que o vento lhe desse oportunidade)

O nosso amor é Janeiro:
mesmo se o julgo esquecido
sei que está sempre lá.

João Luís Barreto Guimarães

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10.1.11


Visita

Criado-mudo:
Bíblia e
rosário de contas.

Na cama, ao lado
a nudez
sem nome.

Virna Teixeira

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9.1.11


ando para escrever poemas da minha infância,
de quando eu tinha um dígito de idade e as
coisas eram tão grandes que os meus pés não
alcançavam o chão. lembro-me de um baloiço
na casa dos meus avós e de uma pedra que
guardava os meus segredos no monte. a minha
irmã sentava-se à chinês e contava um a um
os dias. hoje, nesses lugares, estão os muros,
os prédios, as portas com fechaduras magnéticas,
barreiras que o tempo construiu, de tal ordem que
se não fosse o coração existir, eu nunca tinha
sido pequenina. faz-me falta a inocência,
mas faz mais não pensar nela.

alice macedo campos

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8.1.11


Despida

Olho por sobre o muro
cinza esverdeado
sei do perigo imediato
e ainda assim
mantenho a postura
nenhuma fé
ou candura
nenhuma sina
ou rima
tudo tão pobre
podre
amargo e doce
olho a parede envelhecida
sei da transformação
corpo coberto de penas
sinto murcharem as mãos
olho por entre as asas
a sensação de alívio
já não sou fêmea
sou ave
disposta a qualquer
desafio
olho o V que se forma
vejo as garras afiadas
esqueço os pés
pernas e braços
sou livre agora

voo no espaço.

Dhênova

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7.1.11


Minha Maria também chovia

Tem horas que viro água.
E eu que já me sabia Maria,
descubro-me agora chuvosíssima.
Tudo em mim escoa...
Medos, cansaço, susto
e o que mais da vida for
vira correnteza desesperada,
irrepresável.
Feito um rio que outra coisa não pode ser
além de violentas águas correndo pro mar.

Alê

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6.1.11


há, no rosto da mulher,
um lago de água escura
com um poço de areia ao fundo.
diz o poema que,
quem beber desta água,
se perde no deserto.
a pele é um tecido fino sob os dedos.
as pessoas,
ao primeiro toque dizem que é de seda,
mas não sabem que é ouro verdadeiro,
e vão de um beijo ao outro com muita pressa.
as pessoas não sabem quase nada.
e o poema cresce como um cabelo
na zona púbica.

alice macedo campos

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5.1.11


Não te compreender não me fez te amar menos.
Completo as palavras cruzadas com a ajuda dos resultados.

Leio um livro que não é lançamento.
Roubo a cerveja separada para a visita.
Assisto a um filme no escuro.
Telefono sem pretexto.
Os bolsos do meu casaco formam meu diário.
Não sofro de pudor e desfalco minha pobreza.
Esforço-me agora para desaprender.

Fabricio Carpinejar

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4.1.11


Criancices

Só comprava picolé de limão. Mesmo preferindo o de uva. Achava que era muitomuito esperta por conseguir ver no branco-transparente-fosco, se o palito era premiado, antes de terminar de comer. Vantagem nenhuma. Porque já tinha comprado e aberto a embalagem de qualquer jeito. Mas, me sentia sabida, mesmo trocando o doce da uva pelo azedo do limão.

Briza Mulatinho

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3.1.11


Parto hoje à tarde na carreira 10
está decidido. Sem olhar para trás
sem me despedir sequer da minha rua.

Parto hoje à tarde na caligrafia firme
do recado que deixo na porta do quarto
à espera de dizer-te o que já sabes.

Vou procurar-me.
Talvez um dia volte para jantar.

Rui de Morais

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2.1.11


Soneto Dominical

Já não me aflige mais a pasmaceira
do domingo. Meus filhos mundo afora
e eu em casa pensando. A vida inteira
ensina-me a ser só. Não é agora
que eu hei-de reclamar. Segunda-feira
há de chegar. Há de chegar a hora
em que se apague a chama derradeira;
em que a vida me diga: vá-se embora.

Tudo tão natural. A árvore morta
já não abriga pássaros nos ramos
que pouco a pouco, vão caindo ao chão.
Amei mal as mulheres. Mais amamos
nós mesmos, nosso ofício. Pouco importa
a vida; este domingo; a solidão.

Ildásio Tavares

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1.1.11


O vestido azul

Demorou a preparar-se. Banho, cremes, maquilhagem. Ia olhando o vestido azul pousado na cama. Não resistira. Chamava por ela na montra da loja. Olhou-o de todos os ângulos, pegou-lhe com cuidado e vestiu-o. Perfeito no seu corpo. Como se uma costureira o tivesse feito por medida.
Olhou-se no espelho. Gastara quase todo o dinheiro que tinha mas estava pronta para a sua grande noite. Sentou-se e esperou. Ainda não era a hora certa. Esperou mais e mais. O relógio, por fim, marcou a meia-noite.
Pôs a música a tocar, foi buscar o champanhe e dançou, dançou, dançou. Abriu prendas que comprara e fez a festa até adormecer, linda no seu vestido azul.
Estava só naquele quarto minúsculo, numa cidade estranha. Tinha vinte anos.

Alice Daniel

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨