"A todos os visitantes de passagem por esse meu mundo em preto e branco lhes desejo um bom entretenimento, seja através de textos com alto teor poético, através das fotos de musas que emprestam suas belezas para compor esse espaço ou das notas da canção fascinante de Edith Piaf... Que nem vejam passar o tempo e que voltem nem que seja por um momento!"

31.8.10

Estio

Vem,
deixa a marca dos teus pés sobre a
nudez do mármore,
abre o decote azul sobre os teus
frutos amadurecidos,
diz que são maçãs sem sombra de pecado,
lembra-te que nestas noites de Agosto
a lua te veste de branco
e sobre as suas pedras de luz passeiam
estranhos animais do verão,
gargantas que entoam uma melodia
saem palavras, sem sentido,
vem,
ouve esse rumor cálido na raiz dos teus
cabelos,
solta-os, deita-te, esquece tudo,
procura apenas o meu nome entre as cinzas.

José Agostinho Baptista

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

30.8.10

Há sinais que indicam um desvio
que nunca tomarei,
mesmo assim imagino
a história da minha vida
seguindo esse caminho,
e sou outra mulher
e vivo numa casa
com um jardim semeado de papoilas,
e sempre que florescem
passeio com a minha filha,
com uma rapariga triste
que não me reconhece.

Há sinais que são o testamento
que ninguém escreverá
ao fim de uma curva.

Ana Merino

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

29.8.10

Pensar é encher-se de tristeza
e quando penso
não em ti
mas em tudo
sofro

Dantes eu vivia só
agora vivo rodeada de palavras
que eu cultivo
no meu jardim de penas

Eu sigo-as
e elas seguem-me:
são o exigente cortejo
que me persegue

Em toda a parte
ouço o seu imenso clamor

Ana Hatherly

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

28.8.10

Pensamento longe

A leveza de teu vestido
E tuas mãos dizendo adeus.

Eu iria, mesmo com a certeza de não te encontrar,
E voltaria sem te ter visto,
Passeando com a tua lembrança.

Eu caminharia horas e horas pensando em ti,
Sem chegar nunca ao termo do caminho
Onde estivesse escrito: aqui se acaba o amor.

Dante Milano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

27.8.10

Francesca

Surgiste de dentro da noite
E havia flores em tuas mãos,
Agora surgirás de uma confusão de gente,
De um tumulto de conversas sobre ti.

Eu, que te vi surgir em meio às primícias
Zanguei-me quando disseram teu nome
Em locais baratos.
Eu quis que as frescas ondas pudessem fluir sobre minha mente,
E o mundo murchasse como folha seca,
Ou um pólen de dente-de-leão levado ao vento,
Para poder te ver de novo,
A sós.

Ezra Pound

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

26.8.10

Canto de alma e flores

Fantasio a alma
com o canto da consciência

Há pinheiros bordados na toalha
e perfume de hortênsias no jardim

No grito estridente do grilo
vão-se as horas
e num galho seco
a cotovia canta

Mas chega a noite
a chama da lamparina oscila
e na toalha
os pinheiros deixam cair folhas mortas

Amo esse quadro
esse recanto em que me escondo
E me preparo
para colher as flores da manhã.

Aymar Mendonça

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

25.8.10

Passam os dias

Ondas de espesso óleo são meus dias:
passam tão lentamente que não passam.
Os homens a meu lado olham, passam,
lentos também como os meus lentos dias.

O futuro está aí, cheio de dias,
mas é um duro charco; por ali passam
lentas sombras de sonhos quando passam...
Nocturnos céus cobrem-me os dias.

Aprendi, ensinaram-me os que passam
que sempre passam, passarão os dias,
ainda que pareça às vezes que não passam.

Soube, além disso, que a bordo dos meus dias
também eu passarei com os que passam,
cinza na cinza dos dias.

Nicolás Guillén
(trad. de Albano Martins)

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

24.8.10

Sono limiar

O dia ainda não terminou
para mim
apesar da amante noite
cobrir-me
o olhar nublado
no trajecto das palavras
desalinhadas
ao longo da pena
e uma vaga de mar
invade o sono
limiar

logo desperta
uma zoada invisível
no jardim do lago
com as cigarras
timbaladas
a cantar
um ritual secreto
igual
à vibração dos búzios
num espelho de água

o espírito
cada vez mais distante
alienado
a lembrar o primeiro sonho de amor

João Maria Nabais

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

23.8.10

Candelabro

Num quarto vazio e pequeno, só quatro paredes,
e cobertas com tecidos inteiramente verdes,
um belo candelabro está aceso e arde;
e, em cada chama sua, abrasa-se
uma paixão lúbrica, um impulso lúbrico.

No pequeno quarto, que brilha alumiado
pelo forte fogo do candelabro,
não é absolutamente habitual esta luz que jorra.
Para corpos tímidos não é feita
a volúpia deste calor.

Konstantinos Kaváfis
(trad. de Ísis Borges da Fonseca)

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22.8.10

Matinal

O sangue recorda.
O turbilhão de nuvens negras
contra os olhos.
O remoinho de ramos e folhas
que se abeiravam da roda traseira
da bicicleta.
O peso da lama no guiador.
Os primeiros relâmpagos
que precedem o ribombar da tempestade
no cimo dos pinheiros.
O estrépito das pedras a rolar,
encosta abaixo.
A sombra violeta das sebes
inclinadas, onde fulgia uma colérica
chuva.
A lividez da campainha
quando os dedos a tocavam.
O voo em círculos da ave nocturna
no caminho esburacado.

Tudo isso porque foste embora.

Jorge Gomes Miranda

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

21.8.10

As vestes

Enfrentei furacões com meus vestidos claros.
Quem me vê por aí com esses vestidos estampados não imagina as grades, os muros o chão de cimento que eles tornaram leves.
Não se imagina a escuridão que esses vestidos cobrem e dentro da escuridão os incêndios que retornam cada vez que me dispo cada vez que a nudez me liberta dos seus laços.

Iracema Macedo

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

20.8.10

Memórias de um chapéu

Quisera então saber toda a verdade
De um chapéu na rua encontrado
Trazendo a esse dia uma saudade
D'algum segredo antigo e apagado

Um dia entre a memória e o esquecimento
Colhi aquele chapéu envelhecido
Soltei o pó antigo entregue ao vento
Lembrando aquele sorriso prometido
As abas tinham vincos mal traçados
Marcados pelas penas ressequidas
As curvas eram restos enfeitados
De um corte de paixões então vividas

Aldina Duarte

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

19.8.10

A estrada branca

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

José Tolentino Mendonça

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

18.8.10

Residência no ar

Não sei o que me convém,
se uma casa segura,
janela, quartos e trincos
ou se as portas todas abertas,
se residência no ar.

Não sei o que me convém,
se uma casa encerada,
a família pro jantar,
ou se ventania na estrada,
se residência no ar.

Não sei o que me convém,
se uma casa caiada
com horta, jardim e pomar
ou se andarilha no mundo,
se residência no ar.

Roseana Murray

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

17.8.10

Apetece

apetece por vezes com os dias morrer por um pequeno
instante e deixar os fogos soltos na areia: acrescentar
água à face e perturbar os sentidos em busca da única
luz ou então sentar os movimentos e escrever a uma

amiga. dizer assim como quem fala: que espécie rara
de deus é o teu? a vida é ficar abraçado às dunas
apenas se há dois braços de areia por quem sonhar.

vir então aos poucos contando os mastros do verão
cumprindo o desejo das cartas de mar e assim mesmo
confundir todos os relógios da rota só para ter
mais tempo para ficar. o resto é saber todo o

alfabeto de cor até ao fim até que as palavras vão
nascendo devagar para ser: sonho no sono dos dias
ou ser sono dentro de mim

João Luís Barreto Guimarães

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

16.8.10

Tua biblioteca

Revirei tuas páginas
até encontrar as palavras
que falavam de mim.
Desencapei teu livro
em busca de uma dedicatória
qualquer
em vão:
só havia silêncios.
Reli todas as notas
do autor
e do revisor.
Não havia respostas. Não havia entrelinhas.
Procurei nos índices e nos anexos.
Nada.
No livro desbotado e amarelecido de tua vida
nenhuma palavra sobre mim.

Clara Vasconcellos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

15.8.10

Em delírio encontro-me, juventude em flor. Divagando com os pés desnudos, massacrando as aparas da vida. Enrolada em lençol de pureza. Apenas juventude e mais nada. Apenas sonhos, mais atirada... Eternamente jovem abençoada. Em secretos suspiros, interiormente renovada...

Cristina Pilan Oliveira

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

14.8.10

Entre nós há um rio intransponível.
Há um muro que impede as nossas vozes,
sustenta a linguagem do silêncio,
e torna os teus lábios impossíveis
no ciciar de seda do vento nocturno

e, apesar de tudo,
os meus braços alongam-se para além de mim
e estão á tua espera

pois não é possível ficar onde se está
despojados de luz, despojados do ser,
impedir o amor quando ele está a nascer!...

Albino Santos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

13.8.10

no tear do destino
fiandeira de mim
desnovelo meadas
matizo riscos dos bordados
ora pontilhando alegrias
ora cerzindo,
da vida
retalhos-rasgo

Ana Merij

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

12.8.10

Faz-me

Faz-me
bicho de seda
para que a distância
na tua pele
sendo recente
se aproxime lenta
como fogo esplêndido no peito

e assim transpareçam lábios de ouro
e eu possa tomar o sangue
como pão
onde parco e branco é o meu leito.

Graça Magalhães

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

11.8.10

funde-se o corpo, a dor, a saudade
nessa falta de poros
nessa ausência de pêlos

ah, como é triste a distância
entre o cinzel e a pedra
eu e teu amor
esculpidos em solidão

Lílian Maial

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

10.8.10

Ausência

À sombra da tua ausência
Repouso os meus olhos
Fechados, inertes
Vagueiam por mim
Procurando destroços
Em que despertes,
De repente

Sei-te ausente,
Sei que não posso
esperar-te
Mas este vício
De aguardar-te
Prende-me como lama,
Lodo
Atrofiante, espesso.

E como nódoa
Entranhada
Permaneces como gesso
Colado à parede
Do meu afecto
Qual vinagre
Na minha sede
Qual erro
De tudo
Quanto em mim
Está certo.

Virgínia do Carmo

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

9.8.10

Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vagar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
para ter a ilusão
de nunca mais parar.

Alexandre Dáskalos

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

8.8.10

... essa enganosa tristeza
que me abate vicio
dos portais fechados
dos caminhos de pedra
da solidão dos olhos de luxo
saudade de um dia
que ainda espero virá
minha aflição não é minha
como a rua a escola e a terra
meu desejo é essa mescla
pressentimentos e dores
outra estação que se aproxima
me põe sereno

de verdadeiro encontro

como aquela vez em que tocaste
uma pele angustiada
como o dia em que acendeste as luzes
os olhos as manhãs
como os campos que trouxeste em teu cansaço
como abraço
o tempo em greve
ventos ciganos
laços e verdades

Renato Tapado

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

7.8.10

Há em mim três mulheres:

uma santa cheia de culpa;
uma devassa cheia de luxúria;
e uma que se oculta das duas

Trago as fases da lua...

A quarta mulher é sombra
a vagar no escuro...

M.G. Ferraz

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

6.8.10

O canto prodigioso

Quem o estaria escutando
ao pássaro prodigioso?
Pela janela entreaberta
o canto me chegava
- e subindo no ar,
impregnando-a
da sua breve eternidade,
sustinha a tarde que descia

e enquanto cantasse
era dia

António Simões

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

5.8.10

A Hóspede

Não precisa bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.

Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.

O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram a relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.

Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.

Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha - e esquece.

Guilherme de Almeida

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

4.8.10

Volto à casa da minha infância, janelas e portas fechadas!
Vasos de gerânios vazios, onde antes aquele canto enfeitava.
Sob a casa, sustentada por vigas envelhecidas, corria um braço
de mar onde outrora eu brincava. Seguiu seu curso sem pensar
na dor da minha saudade, ao ver meu espaço ocupado por águas
paradas de um triste alagado!

Iracema Zanetti

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

3.8.10

Esta ânsia que és tu

É esta a ânsia que cedo ou tarde, não se desfaz...
Não se transforma, não se verga...
Não me deixa em paz.
É esta a ânsia que vive dentro de mim...
Que ri, que chora, como se sentimentos tivesse...
E que quando entardece, adormece assim.
Aninhada no meu peito, como se um refúgio fosse,
E mais cedo ou mais tarde vai acordar novamente...
E vai-te querer aqui...
É esta a ânsia que me consome, e que eu ando como louca,
Para arrancar de dentro de mim!!!

Ana Cardoso

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

2.8.10

Múltiplas escolhas me percorrem
Deixo-me sucumbir pelas diversidades
Das tantas mulheres que sou
nunca guardei referências.

Sou habitada por várias cidades
onde o feminino transita livremente
pelas ruas das minhas querências.

Nídia Caldas

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

1.8.10

Dos ciclos

Algo em mim
não se (des)intrega.

Apesar da seiva
derramada
dos sonhos amputados.

Semente
renasce
em nova primavera.

Ricardo Mainieri

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨